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A Fama e a Verdade de José Bonfim

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A FAMA E A VERDADE DE JOSÉ BONFIM

PRIMEIRA PARTE

Você tem em mãos a mais cristalina verdade. Estou certo de que depois de ler estes meus depoimentos, depois de caminhar comigo pelos meandros de minha vida atribulada, você será mais complacente para com o juízo que forças maiores incutiram em sua mente.

Tais forças me usaram, prostraram-me num inferno em vida, transformaram-me num monstro perante a opinião pública. Somente hoje percebo o quanto fui usado!

Espero, com a ajuda de Deus, ter força e coragem, não só para pagar pelos meus tantos erros, mas também para sensibilizar aqueles que me perseguem e caluniam por crimes que não cometi.

Imperatriz, 16 de julho de 1999.

José Bonfim

Neste livro, José Bonfim (152.12), hoje com uma visão totalmente diferente do mundo e das pessoas, narra grande parte dos acontecimentos mais importantes, drásticos e polêmicos de sua vida. Onde nasceu, como começou sua fama, as mentiras de que foi alvo, as perseguições, os tiroteios, as mortes e as injustiças que ainda vem sofrendo por causa da imagem que lhe criaram de ser um homem violento, tido como o pistoleiro mais temido do País.

Pela triste fama, hoje ele amarga inimigos e padece a solidão de uma cela. Todos os seus “amigos” desapareceram, desde o momento em que se viu condenado a 16 anos de reclusão.

Ouvi-o em diversas entrevistas, li muitas páginas de seus desabafos. Senti-o um homem convertido que já não se importa senão com a justiça divina.

O autor

CAPÍTULO 1

Não ouvi, mas os sinos da velha Igreja deviam estar anunciando a Santa Missa quando minha mãe me trouxe ao mundo. Eram sete horas do dia 10 de abril de 1947 e, se os tempos não mudaram, ainda hoje, nesse horário, no Bairro do Anil, em São Luís, a missa é celebrada. Minha santa mãe devia estar com o rosário entrelaçado nos dedos, porque era muito religiosa e, com certeza, deve ter agradecido aos céus pela bênção de mais um filho.

Aos dois meses de vida, encontraram-me no berço, com o braço esquerdo quebrado. Nunca se soube ao certo o que ocasionara aquela lesão. Possivelmente, alguma outra criança tenha tentado me tomar no colo e, sem traquejo, ocasionou a fratura.

Desesperada, ao encontrar-me naquele estado, minha mãe ajoelhou-se ao pé-da-cama e fez uma promessa de que, se seu sarasse sem seqüelas, seria levado à igreja de São José de Ribamar para ser batizado. Eu sarei rapidamente e minha mãe cumpriu a promessa, ponde-me o nome do Santo: José de Ribamar.

Hoje, aqui jogado numa cela imunda, às vezes tenho a tentação de imaginar a distração de Deus para com aquelas orações mescladas com as lágrimas de dor de um parto difícil. Sim, porque, talvez ela, hoje, ao lado de Deus, também não esteja conseguindo ficar isenta dos embustes do mundo que acabou semeando a mentira de ser eu um ladrão, um traficante... o pistoleiro mais atrevido e desalmado do País.

Aqui, num cubículo pequeno e frio, amargo dias de solidão, dias que se tornam eternos ante o abandono “daqueles tantos amigos” que me usaram desalmadamente para conseguir seus objetivos de ganância e poder.

Apenas um amigo, exatamente aquele que nunca eu quis escutar, exatamente aquele que persegui por meio da desobediência ferrenha a seus ensinamentos, agora me faz companhia: Jesus Cristo.

Talvez Ele, sabendo de minha índole intempestiva, tenha alongado meus dias até hoje, de milagre em milagre, como forma de conceder-me a última chance de confessar, a Ele e ao mundo, todas as minhas fraquezas.

E é a esta chance, possivelmente última, que me agarro com toda gana e fé, para contar a verdadeira história de minha vida. Não espero que a justiça humana acredite em minhas palavras, mesmo porque ela é interesseira e incapaz de entender os motivos que levam os homens a cometer desatinos. Espero apenas que Deus o faça.

CAPÍTULO 2

Genealogia e início da fama

Meus avós, Luís Bonfim e Letícia Bonfim, vieram de Crato, no Ceará, para Pastos Bons, no Maranhão. Eram pessoas simples, criadas na roça e vivendo do amanho da terra. Não tinham ambições maiores do que criar os filhos com saúde e dignidade. Por isso, em busca de melhores terras, mudaram-se para Grajaú e, logo depois, para Pedreiras, ambas no Maranhão, onde anos mais tarde faleceram.

Deixaram 6 filhos: Teresa Bezerra, Sócrates Rui, Iltom, Joaquim Bezerra, Antônio Bezerra e Clodomir Bezerra Bonfim. Destes, apenas Teresa ainda é viva.

Clodomir Bezerra, assim como seus pais, era um homem simples e trabalhador. Nasceu em Pastos Bons, no dia 12 de maio de 1915. Vivia de seu trabalho e, como meus avós, só pensava em dar uma vida digna e saudável a seus filhos. No mesmo lugar em que nasceu, casou-se com Luísa Lima Bonfim e, alguns anos mais tarde, mudou-se para São Luís. Teve 12 filhos: Vanilda, Marlene, Luís, Vicente, Ludenir, Maria dos Anjos, Rosalina, Clodomir, Joaquim, Raimundo, Socorro e José Ribamar Bonfim. Desses, Luís, Joaquim e Raimundo já são falecidos.

Eu, José Ribamar Bonfim, casei-me com Maria Eunice Alves Bonfim e tive seis filhos: Hílton Alves, Ailton Alves, Mauritânia Alves, Mauricélia Alves, Francisca Edinete Alves e Elaine Alves Bonfim. Todos vivos.

A triste fama da família Bonfim começou em Mirador no ano de 1951, numa noite trágica, quando dois primos semearam a mais danosa e profícua das sementes. Ela nasceu, proliferou, frutificou... e hoje, quase meio século depois, ainda amargamos seu sabor acrimonioso.

Joaquim Bezerra Bonfim (irmão de meu pai Clodomir) bebericava com seu primo Antônio Bezerra Bonfim. Eles eram amigos inseparáveis. Era quase impossível um deles participar de qualquer festa sem que o outro estivesse por perto. E naquela noite trágica mais uma vez estavam juntos, num barzinho qualquer, bebendo e, por certo, traçando planos para seus sonhos juvenis.

Mas a bebida foi demais! Já grogues, não dizendo coisa com coisa, começaram a discutir. Nunca se soube ao certo o motivo, pois, segundo alguns poucos testemunhos, eles já nem pronunciavam direito as palavras. Como todo bom bêbado que se preza, Joaquim segurou no bolso do paletó de Antônio e, a todo custo, tentou convencer o primo de que estava certo. Também muito bêbado, Antônio sacou de um revólver e desfechou um tiro fatal em Joaquim: maneira que achou mais convincente de argumentar.

Horas depois de ter se evadido do local, já com o efeito da bebida reduzido, Antônio encheu-se de medo e, imaginando que meu pai fosse vingar a morte do irmão, foi até à casa dele para também tirar-lhe a vida. Mas meu pai não se encontrava.

Quando soube de tudo, inclusive que Antônio o procurara para eliminá-lo, meu pai encheu-se de ódio e saiu em seu encalço para resolver de vez a questão. Contudo, Antônio já houvera sido preso e estava fortemente protegido por escolta policial.

Meu pai procurou o comandante e solicitou, por três vezes, que Toinho (apelido de Antônio) fosse solto, pois não queria desrespeitar a polícia. O comandante foi irredutível:

– O prisioneiro está sob minha custódia e daqui só sairá com autorização judicial. E é bom que o senhor não retorne mais, caso contrário teremos de prendê-lo também.

Desiludido de suas pretensões, meu pai voltou para casa. Ao adentrar, surpreendeu-se com a presença de três conhecidos: Pedro Silvino, o filho dele, Antônio Silvino, e mais um acompanhante, que atendia pela alcunha de “Nego Campina”. Sabedores do infortúnio ocorrido com meu pai eles foram direto ao assunto, oferecendo-se para vingar a morte de meu tio Joaquim (o Quincas).

Como meu pai já tinha a vingança sumária na cabeça, ali mesmo começou a traçar o plano que deveria culminar com a morte de Toinho. Acontece que o delegado, já ciente das pretensões de meu pai, colocou, dia e noite, uma guarnição que variava de 20 a 32 soldados para proteger o assassino que estava sob sua custódia. Para que a invasão se desse com sucesso, algum plano novo e quase perfeito teria que ser arquitetado.

Os três passaram grande parte da noite pensando num jeito de burlar a vigilância policial. De repente, meu pai lembrou-se do Hermes, um soldado lotado naquela delegacia e que namorava sua filha Vanilda Bonfim.

– O Hermes poderá nos ajudar.

E assim, na primeira visita que ele fez à minha irmã, meu pai o chamou de lado, conversou com ele e recebeu as informações de que necessitava.

– A guarnição é constante e pesada – disse Hermes, mas há um período do dia em que é afrouxada. No horário do café da manhã, normalmente, menos de 10 policiais mantêm a guarda. Vocês poderão fazer a invasão às 7 horas. Cuidarei dos detalhes para que o menor número possível de policiais estejam lá amanhã nesse horário.

Às 5 horas, meu pai, Silvino e filho, mais o “Nego Campina”, armados até os dentes, partiram para a delegacia. De uma esquina bem próxima, perceberam que o Hermes havia cumprido a promessa: poucos policiais estavam de prontidão. E então, num grito de guerra assustador, eles invadiram o presídio atirando quanto podiam. O alvoroço foi total.

Enquanto meu pai e seus amigos cuidavam dos policiais que estavam de plantão, Toinho, percebendo a armadilha, tentou fugir. Nessa hora, os quatro policiais e o carcereiro já tinham sido abatidos e Toinho ficou à mercê da perseguição furibunda de meu pai, que o alcançou e matou sem piedade.

E assim, como quase sempre acontecem as maiores desgraças de nossas vidas, também a de meu pai, por apenas cinco minutos impensados, estava selada para o resto de seus dias.

CAPÍTULO 3

A fuga

Terminado o massacre, como já havia sido combinado, os quatro procuraram salvar a própria pele. Em menos de uma hora, Mirador parecia ter mais policiais do que paisanos. O tempo urgia. Um minuto perdido poder-lhes-ia ser fatal.

Com os planos feitos, eles fugiram para São Bento, um lugarejo às margens do Rio Grajaú, no município de Lago da Pedra. É que lá morava um “coronel” – na época em que patente podia ser comprada –, um político muito influente e poderoso de nome Pedro Bogéa. Também naquele tempo já havia os “poderosos e respeitados homens” que ostentavam fama e poder por meio de crimes perversos, eliminando tudo e todos que obstassem suas pretensões.

Pedro Bogéa não dispensava qualquer “funcionário” que chegasse com a “recomendação” que eles possuíam. Mesmo assim, até que os boatos comentados fossem provados, Bogéa mandou que os prendessem. Fazia parte do acordo secreto que muitos coronéis mantinham com a polícia.

Naquele tempo, o Maranhão e grande parte do Nordeste eram dominados por latifundiários, coronéis que se instalavam pela força e eram temidos pela própria polícia. Sempre que havia crimes hediondos ou massacres, os causadores fugiam e, normalmente, iam pedir guarida em uma dessas fazendas. Se fosse do interesse do coronel, tais fugitivos eram acoitados, caso contrário, eram presos, mortos ou entregues à polícia. Meu pai e seus companheiros faziam parte desses aventureiros que se punham à mercê das benesses ou não de um desses coronéis. Aceitaram a prisão e ficaram aguardando a decisão de Bogéa.

Deixa que a “cadeia” de Bogéa era de correntes e só havia cadeado para dois prisioneiros. Meu pai e o filho de Silvino ficaram soltos, vigiados apenas por um homem e a cozinheira. Quando a noite avançou, aproveitando-se do vacilo do vigia, meu pai o dominou, tomou-lhe as chaves, soltou os companheiros, deixando o vigia trancafiado junto com a cozinheira. Feito isso, como se fosse a coisa mais natural do mundo, dirigiram-se ao dormitório dos empregados. Lá, dominaram os oito capangas que ressonavam, amarraram-lhes as mãos com cordas e depois uns aos outros. Não satisfeitos, audaciosamente ocuparam as redes dos capangas, dormindo até o dia amanhecer.

Meu pai, conhecendo os “coronéis” de seu tempo, sabia que atos assim serviam e definiam a sorte de quem estivesse pretendendo viver sob suas graças. E, de fato, não foi diferente com Bogéa. Quando saiu de seus aposentos para o desjejum, percebeu que a mesa estava vazia e que sua cozinheira se debatia entre correntes. Foi ao dormitório dos capangas e percebeu, por inteiro, o que havia acontecido. Meu pai – como se aquilo fosse corriqueiro – jogou a cabeça por cima da rede e ficou observando Bogéa com seu único olho, já que havia perdido o esquerdo no ano de 1925, quando ainda tinha 10 anos, num acidente com uma “por fora”, espingarda rudimentar muito usada, ainda hoje, por caçadores sem poder aquisitivo. Totalmente aturdido, Bogéa resolveu quebrar o silêncio constrangedor que se fizera:

– “Piloto”, desamarre os homens.

Ao que meu pai redargüiu em riste:

– Meu nome é Bonfim.

Percebendo a gravidade do momento, o coronel mudou de tática:

– Ora, por que não me disse logo?

– Porque o senhor não perguntou.

Os prisioneiros foram soltos e em menos de uma semana meu pai já comandava toda a “tropa” do coronel. Passou a ser protegido e respeitado.

A mais salutar das sementes da má fama houvera sido plantada e, talvez, nenhuma outra tenha nascido no Maranhão com tanto vigor. Toda a descendência iria carregar, através dos tempos, as marcas profundas da perseguição, das mentiras e das traições. E nós, ainda que não fosse de nosso agrado, ficamos envolvidos de tal forma que, para sobreviver, tivemos que utilizá-la em muitos capítulos de nossas vidas.

CAPÍTULO 4

Os dias seguintes

Meu pai se tornou o homem de confiança de Pedro Bogéa. Era ele quem recebia as contas, mesmo aquelas já consideradas perdidas. Ainda que aquilo não estivesse sendo de seu agrado, meu pai aceitava, mesmo porque não via outra alternativa para o momento.

Normalmente os crimes que não envolviam policiais eram logo esquecidos. Esta, não era a situação de meu pai. Quatro policiais e o carcereiro foram mortos e, desse modo, a vingança policial se tornava – como ainda acontece hoje – uma questão de honra.

Mesmo sabendo da importância da proteção de Bogéa para manter-se vivo, meu pai foi falar com ele. Disse que precisava decidir sobre sua vida, porque tinha família e não podia abandoná-la ao próprio destino. O coronel o ouviu e resolveu aceitar a proposta de Clodomir, meu pai, de trazer a família para seu aconchego.

Mais tarde, como todas as terras daquela região ainda pertenciam ao Estado, meu pai providenciou a vinda da família e foi trabalhar numa área contígua à de Bogéa, mais ou menos a 40 quilômetros de São Bento. Seus companheiros da tragédia o acompanharam. Construiu casas, derrubou matas, plantou, colheu. Em poucos anos a fazenda já se transformara no vilarejo “Juçaral do Bonfim” – nome que ainda hoje perdura e é devido aos grandes brejos de juçara que se estendiam a perder de vista – e meu pai passou, também, a desfrutar de proteção política, angariando o título de “Coronel Bonfim”.

Corria o ano de 1957. Meu pai se tornou adversário político de Pedro Bogéa. Isso significava um grande problema para ele, pois Bogéa jamais iria aceitar o que classificava como ingratidão. A bem da verdade, meu pai também andou triste devido a contingências que acabaram por torná-lo dissidente das idéias políticas de seu pretenso protetor, se é que algum político tem esse sentimento em relação a alguém. Sim, porque, na verdade, a luta pelo poder tem sempre o objetivo como prioridade, ainda que tenha de ser pisado o mais leal dos correligionários. Infelizmente, a amizade entre meu pai e Bogéa ficou estremecida e piorou ainda mais quando meu pai precisou escoar os cereais produzidos em suas terras. É que a única estrada que havia, ligando Juçaral do Bonfim a Lago da Pedra, passava por São Bento – totalmente sob o domínio de Pedro Bogéa. Em reconhecimento ao que ele lhe fizera, meu pai preferiu evitar o confronto, mandando construir uma outra estrada, que fosse dar em Vitorino Freire e passasse fora dos domínios do agora seu inimigo.

Quando soube que meu pai construíra a estrada, Bogéa irou-se ainda mais e contratou pistoleiros para eliminá-lo. Por já estar envolvido com a vingança de seu irmão, meu pai tentou evitar o confronto, indo à delegacia de Lago da Pedra, onde denunciou o fato. O delegado, depois de ouvi-lo, autorizou-o a prender qualquer estranho que aparecesse pelas cercanias de sua fazenda. Assim meu pai fazia, mas Bogéa era muito poderoso e logo mandava soltar os seus capangas.

Percebendo que aquilo iria dar em mortes e não querendo ser ingrato com quem o acolhera num momento difícil de sua vida, em 1959 meu pai preferiu vender as terras para José Joaquim de Araújo, conhecido por José Chicó, transferindo-se para a cidade de Bacabal, também no Maranhão.

Chicó era casado com minha irmã Maria dos Anjos. Teve com ela 23 filhos, todos vivos até o dia de hoje. Nascido em 3 de fevereiro de 1932, veio a falecer no dia 11 de janeiro de 1996. Neste dia, deitou muito bem, dormiu logo e nunca mais acordou, certamente vítima de infarto.

CAPÍTULO 5

Os tempos vividos em Bacabal

Ainda que seu desejo fosse esquecer a cena de vingança que praticara em favor de seu irmão, meu pai dela não conseguia se livrar. Era sua intenção, em Bacabal, arranjar um emprego decente e criar seus filhos longe de toda trama que o desabonasse ainda mais. Mas, infelizmente, os políticos e poderosos viviam um tempo de grande procura de “funcionários” para tocar seus negócios e viabilizar suas ganâncias de possuir as maiores e melhores terras do Maranhão.

As facções políticas e a luta pelas terras pareciam ter atingido o auge. Logo que souberam que o autor da chacina na delegacia de Mirador – cidade interiorana do Maranhão que dista da capital, mais ou menos 400 km – havia chegado à cidade, os recados se sucederam. Sem pensar nas conseqüências e tangido pela necessidade de dinheiro para cuidar da família, meu pai foi se envolvendo, sendo usado por homens inescrupulosos, terminando, assim, por ser reconhecido como uma pessoa das mais perigosas da região.

De pouco adiantou as tantas vezes que disse não a escusos convites, afirmando que não era pistoleiro e que o que fizera em Mirador houvera sido feito apenas para vingar a morte do irmão. Mas eles não acreditavam, porque o boato já havia rompido fronteiras e sua fama de homem mau se tornara proverbial. Ao ponto de algumas mães chegarem a acalmar seus filhos rebeldes ameaçando: “Olha, o Bonfim está vindo aí!” Relutante, meu pai tentava, por todos os meios possíveis, desgarrar-se da fama de bandido.

Na venda de suas terras, além do dinheiro, ele recebeu um caminhão. Comprou uma casa em Bacabal e para lá levou a família. Com o caminhão iniciou um negócio de compra e venda de mercadorias. Ganhou um bom dinheiro e logo comprou outro caminhão. Infelizmente, mais uma das tantas crises econômicas que periodicamente assolam nosso País acabou por desanimá-lo, também, desse tipo de negócio.

Para não aceitar os tantos e perigosos convites de políticos e poderosos, preferiu contrabandear, do Panamá, relógios, whisky, diversos tipos de aparelhos de som, bijuterias... Nessa nova experiência de vida teve várias oportunidades de matar, mas nunca o fez. A tentação foi ainda mais forte em meu pai quando, em 1964, um figurão de nossa política mandou assassinar o prefeito de São Domingos, Hermes Cunha – aquele soldado que o havia ajudado a vingar a morte do irmão Joaquim Bezerra Bonfim, em Mirador.

Sei que a fama da família Bonfim, tal o estágio alcançado, é alguma coisa tão arraigada e apregoada que talvez seja humanamente impossível apagá-la da mente das pessoas.

Não sou psicólogo, não tenho estudos, mas percebo que, se há algo muito forte em nossa família, este algo é um misterioso pacto de proteção recíproca. A excessiva solidariedade que nos devotamos em família tem sido, tantas vezes, motivos de grandes problemas. Essas prerrogativas, somadas à coragem incomum, quase inconseqüente, fez dos Bonfins uma família temida e, por tantas demonstrações, injustiçada.

Entretanto, mais uma vez, essa força estranha foi mais forte que a sensatez: meu pai saiu no encalço dos criminosos, conseguindo prender um dos pistoleiros no estado de Goiás e o entregou à Justiça. Um segundo pistoleiro foi preso no Ceará pela própria polícia, enquanto, até hoje, o mandante continua solto e sendo respeitado pela classe política como um homem honrado e bem sucedido.

Assim eram e assim estão sendo nossas polícia e Justiça: por uma galinha eles espancam e prendem um pobre coitado, enquanto a maioria dos políticos, grande número de empresários e de pessoas que desempenham cargos públicos de alta confiança e até alguns juízes e ministros saqueiam a Nação sem que sejam apenados devidamente pelos seus crimes. Quando muito, perdem o mandato ou o emprego, mas continuam com suas contas no exterior, capazes de mantê-los como reis para o resto de seus dias. Agora, por exemplo, não se fala em outra coisa que não seja o roubo de bilhões envolvendo o socorro inexplicável que o Banco Central propiciou ao Marka e ao FonteCindam.

Se os cães falassem, certamente ganiriam em tom de juramento que houve roubo, mas se os banqueiros envolvidos não assinarem uma confissão e entregarem à Justiça, com firmas reconhecidas, jamais irão para a cadeia ou devolverão o montante saqueado.

O tráfico de cocaína pela FAB; a questão dos precatórios envolvendo Pita, Maluf e tantos outros políticos; as incessantes denúncias de corrupção política desviando bilhões e bilhões, com maior clareza do que a que propicia o sol num dia límpido de verão, não irão dar senão em mais um gasto com papéis, sessões extraordinárias e viagens de comissões parlamentares de inquéritos. Aquela eterna farsa de sempre para engabelar o povo.

No entanto, os motoboys Márcio Rogério Xavier e Francisco de Assis Pereira (maníaco do parque), acusados de terem estuprado muitas mulheres, e o enfermeiro Édson Izidoro Guimarães, que praticou a eutanásia, irão apodrecer na cadeia. Os crimes cometidos por eles, apesar de horrendos, representam, apenas, a conseqüência dos bilhões que deveriam ser aplicados na Educação e Segurança e que foram literalmente roubados por uma corja de políticos ou detentores de cargos de confiança do governo.

É como se as vultosas quantias desviadas por essa gente fossem comparadas a uma grande represa aberta, cuja água desce causando grandes prejuízos. É a água que causa o problema, mas os culpados mesmo foram aqueles que abriram as comportas de uma só vez.

Ainda que muitos contestem, uso meu direito de cidadão que vive num país que se apregoa democrático para dizer que considero a maior parte de nossos políticos responsável por toda a desigualdade social que vivemos.

Se minhas palavras tivessem crédito, eu poderia enumerar dezenas de políticos e homens, hoje poderosos, tidos como moralistas e cumpridores de suas obrigações, que muitas vezes me procuraram para atos indignos e até para eliminar desafetos. Mas eles são “honestos, dignos, honrados” e poderosos, enquanto eu, um bandido, um pistoleiro, um vagabundo, um assassino... Certamente se o fizesse, minha pena iria ser elevada por difamação ou falso testemunho. Quem sou eu para denegrir ou pôr em dúvida o “caráter ilibado” de muitos de nossos homens respeitados de hoje!

No dia 6 de dezembro de 1987, o jornal “O Estado do Maranhão”, na página 2 do 1º caderno, estampou a seguinte denúncia na seção “O QUE DIZ O LEITOR”:

“Exclusão incompreensível

“Senhor redator:

“Com relação a manchete publicada pelo jornal ‘O Imparcial’ sobre o caso do pistoleiro Zé Bonfim, de Imperatriz, venho esclarecer à opinião pública que um dos envolvidos é o delegado de Polícia Federal José Bonfim que, por sinal, foi indiciado no inquérito que apura a morte do caminhoneiro Saul Ribeiro de Assis. Depois do procedimento de praxe, o inquérito foi enviado para a Justiça e o promotor público denunciou o delegado por conivência nos crimes cometidos pela ‘gang’ do pistoleiro.

“O mais escandaloso de tudo isso foi a maneira maliciosa do doutor Juiz Liciano de Carvalho, que julga o processo. Excluiu da denúncia do Ministério Público o delegado da Polícia Federal, José Bonfim, pois o mesmo é genro do desembargador Guerreiro.

“É lamentável que nossa Justiça não aplique justiça, mas, em se tratando de seus familiares, as coisas são diferentes. Para infelicidade deste País, a Justiça se confunde com os outros poderes, onde existe de tudo.

“Voltando ao processo. O referido Juiz, em seu despacho, exclui o delegado de maneira escandalosa. Não fundamenta, como manda a lei. O despacho é o seguinte: ‘Excluo da denúncia o Sr. José de Ribamar Bonfim, delegado da Polícia Federal, por não existirem provas nos autos’. Mas também não indica as provas que o inocentam. Ora, isso é um insulto para a razão.

“Tenho certeza absoluta que esse despacho é de má-fé, pois todos os juízes que têm afinidades com desembargadores logo se promovem, até chegarem à Suprema Corte de Justiça do Estado.

“Não tenho sogro, pai, mãe..., para driblar a Justiça, muito menos dinheiro para comprá-la. A minha justiça é a cadeia.

“Meu Brasil grita por justiça.

“São Luís (MA), 2 de dezembro de 1987.

“Juracy Sodré - Av. Kennedy, 200 - Fátima - São Luís.”

Coisas assim acontecem a cada dia em nosso País, o que me faz acreditar que Polícia, Justiça, Política... tudo é uma grande farsa montada para salvar as aparências, em detrimento do que de fato é justo e de direito. Sou produto desta criminosa farsa.

Capítulo 6

De pai para filho

Apesar de não ser nenhum santo, meu pai, como vocês viram, não foi também o pior dos homens. Pagou o preço de sua índole intempestiva, o preço de haver nascido num tempo e num lugar onde aqueles que não se encolhessem no medo teriam que enfrentar as mais ferrenhas lutas pela sobrevivência.

É incontestável que o meio faz o homem ou, quando nada, que a maioria das pessoas acabam achando normal os costumes da região. Imaginem qualquer um de nós vivendo no Tibete, na Austrália, na Groenlândia... Com certeza, o impacto cultural seria muito grande. No entanto, nada mais normal para um esquimó do que viver em sua casa de gelo, assim como a um monge tibetano passar uma vida inteira enclausurado em mosteiros naquelas altas e frias montanhas asiáticas.

Meu pai, corajoso lavrador, metido entre grileiros e posseiros, vendo crimes se sucederem pela posse da terra, estando sempre nesse meio, também começou a achar normal a defesa de suas posses segundo os meios que naquele tempo eram usados e segundo, também, sua concepção de justiça.

Contudo, matar mesmo, meu pai o fez apenas em 1951, e àquele que assassinou seu irmão. Mesmo assim, quando veio a falecer na cidade de Imperatriz, sua fama de pistoleiro e assassino nunca o abandonou. Foram 34 anos de sofrimento e insônia, de perseguição ferrenha, tanto da polícia como dos hipócritas, que, vestidos de cordeiros, não lhe davam tréguas, insistindo para que permanecesse alimentando a fama de pistoleiro.

Meu pai faleceu no Hospital Santa Maria no dia 24 de dezembro de 1985, vitimado por uma brusca hemorragia cerebral. Nesse tempo ele já vivia com sua segunda mulher, Percília Barros. Viveu com ela até o fim de seus dias, de 1960 a 1985, deixando desse relacionamento três filhos: Letícia Barros, Clodomir Barros e Maria Carmem Bonfim. Sua primeira esposa, minha mãe, faleceu alguns anos depois da separação.

Com a despedida de meu pai deste Vale de Lágrimas, ao invés dos boatos sobre a família Bonfim arrefecerem, ainda mais se acirraram em cima de minha pessoa. De pouco me adiantou tentar uma vida pacata e honesta. Os mesmos que usaram meu pai, agora vinham a mim. Nossos “grandes e respeitados homens”, freqüentemente me procuravam e, por mais evasivas que eu apresentasse, sempre acabavam usando a arma da necessidade para convencer-me a aceitar as mais perigosas empreitadas.

Apesar de já conhecer Imperatriz desde 1964, quando trabalhava como motorista na empresa de ônibus do senhor Dudu (Eduardo Gomes de Oliveira), fazendo a linha Bacabal–Imperatriz, somente em 1967 transferi minha residência para cá. Já acostumado a dirigir ônibus, passei a trabalhar na empresa “Estrela d’Alva”, de propriedade do senhor Pedro Gomes. Em 1969, meu pai resolveu abrir a “Fazenda Médici”, que fica no km 121 da estrada que liga Açailândia a Santa Inês. Para ajudá-lo, deixei o emprego.

Como bom motorista que era, ele confiou-me um Jeep e sempre que havia necessidade de levar alguma coisa ou empreitar algum serviço, eu ia até lá.

A região maranhense do Pindaré, no entanto, se não igual, era pior que a do Bico do Papagaio (norte do Estado do Tocantins) no que se refere às lutas pela posse da terra. Enquanto nas terras tocantinenses as lutas mais aconteciam (e ainda acontecem) por causa da fertilidade e beleza natural da terra, no Pindaré a briga se dava pela madeira. Poucas são as regiões brasileiras que superaram, em diversificação de essências, à do Pindaré. Pau-d’arcos ou ipês, angelins, jatobás, tatajubas, cumarus... pareciam plantados em reflorestamento, tal a proximidade de uma árvore à outra.

Indústrias madeireiras vindas principalmente do Sul e do Sudeste instalaram-se em Imperatriz, Açailândia, Buriticupu, Itinga do Maranhão e cidades limítrofes de outros estados. Serravam dia e noite, enquanto verdadeiros comboios de caminhões madeireiros transportavam a matéria-prima, ininterruptamente.

Os pioneiros ou desbravadores de terras devolutas, ainda que ali já morassem há anos, não tinham o direito de posse observado. Conforme a febre da madeira aumentava, com ela aconteciam as invasões, as mortes e toda sorte de absurdos.

Buriticupu foi, sem sombra de dúvidas, o quartel-general desses confrontos. Nos seus derredores, latifundiários dos mais diferentes pontos do País demarcaram suas áreas. No começo, apenas alguns pacatos lavradores tomavam conta, mas, com a cobiça dos madeireiros, esses foram sendo substituídos por homens armados, dispostos a tudo para manter o direito sobre a posse.

Pois bem, foi exatamente ali que meu pai achou de escolher uma área para cuidar. Só que os anos já haviam diminuído suas forças e arrefecido qualquer espécie de ganância desenfreada, na certeza de que seus dias estavam chegando e que já não valia a pena arriscar-se por coisas de que não iria precisar na outra vida. No entanto, enquanto ele completava seu caminho, eu apenas tomava o bastão de suas mãos para iniciar um novo tempo de transtornos.

No Pindaré, nesse tempo, mandava Pedro Ladeira, um dos grileiros mais insaciáveis de que tivemos notícia. Foi ele quem vendeu a maior parte das terras devolutas da região, terras que, às vezes, ele nem conhecia.

Ainda que, praticamente, a lei não fosse observada, a polícia foi chamada a intervir. Acontece que, mais que agora, ela não tinha meios nem contingente para enfrentar situações graves como a que existia no Pindaré. Deixa que o comandante Amojacir, amigo do meu pai, porque não tinha carros para levar os policiais à região, solicitou dele o Jeep. Meu pai não impôs qualquer condição. Não bastasse eu ser o motorista do Jeep de meu pai, a polícia ainda pediu um outro Jeep pertencente a meu irmão Quincas. Com isso, dois Bonfins acompanharam os policiais na dura e difícil tarefa de desocupar as áreas vendidas ilegalmente pelo grileiro Pedro Ladeira.

Não foi preciso mais que isso para que também a minha fama de pistoleiro surgisse. Assim, apenas por dirigir um Jeep que transportava policiais em arriscadas diligências, comecei a herdar a triste fama de meu pai.

Não que nessa diligência eu tenha me envolvido em lutas ou ajudado os policiais a retirarem os posseiros das terras, mas simplesmente por estar com eles.

A luta pelas terras do Pindaré já vinha de há muito tempo. Muitos pais de famílias perderam suas vidas ali, pois os grileiros, sempre com apoio político, não hesitavam em eliminar as pessoas que dificultassem suas negociatas. Homens simples e humildes, capangas, agentes federais... muita gente, principalmente aqueles que menos deviam, acabaram perdendo a vida naquela região.

CAPÍTULO 7

Minha primeira encrenca

De algumas coisas sei que jamais a sociedade poderá acusar-me: preguiça e medo são duas delas.

Como havia muitas terras abandonadas por toda a região – terras que tinham dono sim, mas eram pessoas normalmente de lugares distantes, gente gananciosa que procurava se apossar de grandes áreas para lucros futuros – resolvi, também, ocupar um pedaço de uma delas. Ficava no km 1.700 da rodovia Belém–Brasília (BR 010).

Só Deus sabe de minha luta para brocar e derrubar quatro alqueires e meio de mata, antes que as chuvas começassem. Terminei o serviço no início de dezembro e já os céus começavam a se encher de nuvens, prenunciando o inverno, para nós representado pelos meses que vão de janeiro a junho. As chuvas que se iniciam nos fins de dezembro desabam fortemente em fevereiro e março, tempo em que as roças devem estar sempre com as sementes já plantadas.

Mesmo ainda não secas para a coivara, resolvi atear fogo e, com a graça de Deus, deu para plantar. Tudo parecia bem e até cheguei a pensar que minha vida iria sossegar por aí. Mas, se Deus é grande, com certeza, o diabo não é pequeno.

Ainda não havia colhido os frutos de meu trabalho quando a visita inesperada de um baiano de nome Gilson, que se dizia dono daquelas terras, roubou-me todo o sossego. Eu era apenas o quadragésimo-primeiro posseiro daquela área. Ocupávamos uma extensão de quatro quilômetros de frente para a Belém–Brasília.

Sabedor de que o que se dizia dono da terra estava para chegar, reuni todos os posseiros e traçamos um plano para botá-lo para correr. Formamos dois blocos. Eu vigiaria a passagem em que havia construído minha casa e eles a outra passagem. É que havia duas estradas para se passar pelas terras de que Gilson se dizia dono.

Nesse tempo, eu era muito pobre, nunca parara para pensar em Deus, bebia exageradamente e não dava qualquer valor à vida. Isto sempre representou a grande vantagem que eu levava sobre meus contendores que temiam a justiça divina e sabiam o quanto era preciosa a vida.

No entanto, hoje, somente hoje, aqui confinado entre quatro estreitas paredes, sem janelas, sem um fresta na porta para ver o movimento lá fora, tenho o tempo necessário para entender a grande oportunidade que Deus está me dando para repensar a vida e salvar minha alma.

Se eu morresse naquele tempo, ficaria surpreso ao deparar-me com o Juiz Supremo. Nem sei o que Ele faria comigo, pois jamais parei para pensar se o que eu estava fazendo era certo ou errado. Hoje reconheço essas coisas e devo levar os dias que me restam amargurando o arrependimento por tudo quanto fiz de errado.

Pois bem, Gilson foi ver de perto suas terras, mas como nunca tivesse ido lá e não soubesse nem das divisas, tomou outra estrada e foi esbarrar na invasão de um sujeito chamado “Cravim”, onde havia mais de 100 homens. “Cravim” e seus homens fizeram o que nós estávamos prontos a fazer: puseram-no para correr.

Inconformado, Gilson procurou a polícia e, com uma ordem da Justiça nas mãos, foi lá e colocou uma cancela com cadeado na estrada. Acontece que o pessoal do “Cravim” não estava em suas terras, apenas utilizava a estrada, única passagem que havia para que os posseiros saíssem de lá, já que moravam nos fundos. Mal a polícia arredou o pé, eles chegaram e jogaram tudo no chão. Estava formada uma das grandes encrencas pela posse da terra.

Sabedor da reação, Gilson já pensava em abandonar a área quando soube do engano que cometera. Não que suas terras também não estivessem infestadas de invasores, mas estes podiam ser mais acessíveis às ameaças. Gilson soube também que havia na área um homem que podia resolver o problema dele: no caso, eu.

Depois de se benzer ao ouvir meu nome, acabou convencido por um amigo a conversar comigo para estudar a possibilidade de empreitar-me a retirada dos invasores de suas terras.

Dias depois, o Sena, amigo goiano que fazia os contatos, deixou-me no então Hotel Anápolis para conversar com o Gilson. Sena sabia de minha coragem e da grande dificuldade financeira por que eu estava passando naquele momento – condições mais que favoráveis para que o acordo fosse firmado.

Em menos de cinco minutos de conversa percebi que Gilson era “grileiro da pesada”, mas eu não estava nem aí para as pretensões dele. O que eu queria mesmo era um vultoso pagamento para resolver os meus problemas financeiros mais urgentes.

Além de uma caminhonete C-10 ele me ofereceu muito dinheiro e o negócio foi fechado. Eu teria que entregar a terra dele livre dos posseiros e ainda fincar uma porteira com cadeado para que outros não voltassem a lhe ameaçar o direito de posse.

Minha empreitada começou mal. Fui a Goiânia buscar a C-10 e já na volta, na “Ponte do Mosquito”, perto do Estreito, só não bati de frente com um ônibus, porque preferi a pirambeira, dando quatro tombos e destruindo totalmente o carro. Ainda que nada dele mais se pudesse aproveitar, saí com vida e parti para cumprir o que havia combinado.

CAPÍTULO 8

O início da empreitada

Recebido o dinheiro, parti para executar o trabalho. Bem no começo da invasão, morava o Pedro Baiano, homem rude que também não gostava de recuar quando estabelecia um plano qualquer. Possuía 11 filhos e não lhe passava pela cabeça perder tudo o que havia feito ali.

Mais para os fundos, moravam outros 40 posseiros, mas desde o início eu sabia que Pedro Baiano seria mais difícil do que todos os demais juntos. Por isso comecei por ele. A discussão foi acirrada.

Sem me frustrar, ele disse que não sairia e logo veio a Imperatriz “dar parte” de mim na delegacia. Quando o delegado me convocou, apresentei a ele a documentação oferecida pelo Gilson, mais a procuração que ele havia me passado para que eu respondesse por suas terras.

Mesmo sob veementes protestos, Pedro Baiano desocupou a parte que ocupava e quando fui estar com os 40 posseiros restantes, já as casas estavam vazias. De medo, pela própria fama que criaram de mim, todos se evadiram. Restava, agora, colocar a cancela para impedir que outras pessoas passassem por ali. E o que parecia ser o mais fácil, na verdade, foi o mais difícil.

Como já disse, nos fundos das terras que Gilson dizia suas, moravam mais de 100 posseiros comandados pelo senhor “Cravim”. Embora eu soubesse que a cancela não seria aceita, deixei no local quatro homens para que abrissem os buracos dos esteios e voltei para providenciar as dobradiças, um pedaço de corrente e o cadeado.

Quando retornei, deparei-me com um verdadeiro batalhão de invasores, todos armados de espingardas e ferramentas de trabalho: facões, foices, machados, enxadas e cavadeiras. Dei bom-dia e a resposta foi um silêncio assustador. Se um palito de fósforo fosse aceso, todos ouviriam o chiar do atrito. Em minha vida atribulada, nunca senti mau presságio pior que o silêncio. Deduzi, pela minha experiência, que eles haviam tramado minha morte e confesso: nunca a senti tanto em minhas veias.

Sem demonstrar constrangimento, saltei do carro e disse para os quatro homens que eu havia ordenado que fincassem os mourões:

– Por que estão aí parados? Nunca viram homens não?

Eles ficaram quietos como estavam. Ninguém ousava dar uma palavra. Meus quatro homens tremiam de a gente ver-lhes as roupas balançarem. Nos olhos da multidão, muito ódio e determinação.

Depois de minutos ali, absorvendo aquele clima de morte, percebendo que minhas pernas também começavam a tremer, tentei o diálogo, na certeza de que seria suicídio enfrentar, sozinho, uma centena de pessoas disposta a tudo. A multidão, no entanto, sempre em silêncio, foi me cercando e pressionando-me contra a parede de um paiol que havia na margem da estrada. Fui recuando até dar com as costas na parede.

Então humilhei-me, dizendo a eles que estava ali apenas para executar meu trabalho e que eles deviam permitir que eu colocasse a cancela. Com a graça de Deus, ao menos um quebrou o silêncio, dizendo que eu não era homem para fazê-lo. E assim, ficamos por alguns minutos discutindo, com os ânimos se acirrando cada vez mais. Como última instância, disse a eles:

– Vocês estão aqui neste mato para trabalhar e dar sustento às suas famílias, não estão?

Eles confirmaram. Continuei:

– Não estou aqui para expulsá-los das terras que estão ocupando não, mas sinto que o que vocês estão querendo é confusão. A gente vem a este mundo para um dia dele partir. Para mim não importa se a hora for esta.

Eles ficaram em silêncio, fitando-me como uma leoa que espreita a presa.

Quando senti que, se não tomasse uma decisão certa e imediata, eu morreria ali mesmo, saquei dos dois revólveres que tinha comigo, firmei as mãos na parede do paiol e num gesto brusco e violento dei com o pé no peito daqueles que estavam mais próximos de mim, jogando-os de pernas para cima. No mesmo instante gritei para que todos ouvissem:

– Se querem briga, irão ter. O primeiro que fizer o mais leve movimento, eu queimarei.

Nem sei como aquelas palavras saíram de minha boca, pois sou um homem normal, um homem que também sente medo, apesar de a fama ter me transformado num frio e calculista assassino.

Mais uma vez, sem saber a razão, veio a ajuda de Deus. Lá do meio deles, alguém levantou uma das mãos e disse que queria falar comigo. Era o chefe da invasão, o senhor “Cravim”. Aquilo pra mim foi um alívio que não sei se viverei o tanto necessário para agradecer tamanha graça dos céus.

Ele veio e, depois de muita conversa, acordamos que a cancela seria fincada e que ele ficaria com uma das chaves do cadeado para que seu povo pudesse passar com os cereais quando fosse preciso. Eles ainda ajudaram a fincar os esteios e quando sumiram na curva da estrada, suspirei aliviado, na mais contrita oração bandida por ainda estar vivo.

Contudo, os que presenciaram o fato tanto aumentaram minha coragem que a fama triplicou. Era o diabo no inferno e eu na Terra. Logo, todos os que tinham problemas parecidos passaram a me procurar e já não havia como eu dar conta de tudo. Por isso, arrebanhei amigos corajosos e passei a ser chamado de “gato” ou “empreiteiro”, ou seja, aquele que assume um trabalho e repassa a terceiro, ainda que a responsabilidade seja dele.

Fiz, assim, muitos desmatamentos, construí muitos quilômetros de cerca, semeei e plantei capim em milhares de hectares: tornei-me, no disse-me-disse do povo, um dos mais famosos e perigosos grileiros da região, só comparado a Pedro Ladeira. A fama de grileiro foi mais uma calúnia que jogaram em cima de mim, porque a maior parte das terras que tive em minha vida foi comprada. Minhas mãos viviam cheias de calo e jamais tive tempo de estender uma rede na varanda para descansar.

Dia e noite eu batalhava para vencer na vida, ainda que sempre tenha vivido na pobreza. Aliás, nunca consegui entender a razão de minhas coisas acabarem em nada. Muitas vezes ganhei bastante dinheiro, mas em menos de meses já ele havia evaporado como éter ao sol. Ainda assim, nunca esmoreci e, para obtê-lo, tanto trabalhei por mim como por aqueles que sordidamente me usaram.

CAPÍTULO 9

Mais confusão

Trecho Seco, município de Imperatriz,1973. Ainda não havia agradecido a Deus por ter Ele me livrado dos posseiros do “Cravim”, quando um tal de Rubinho Montenegro me procurou para uma empreitada indispensável a quem trabalhasse e estivesse, como eu, precisando de dinheiro. Para ser sincero – pelas frescas lembranças do aperto que eu apenas havia passado – se soubesse que a terra estava em litígio, eu não teria aceito.

Acontece que só depois de firmado o contrato é que fiquei sabendo da questão, e como nunca fui de faltar com a palavra, iniciei o serviço. Para piorar a situação, a questão envolvia dois advogados de Imperatriz: o doutor João Jacob e o doutor José Clébis, amigos que sempre me socorreram nas horas mais difíceis de minha vida.

Cheguei a pensar em rescindir o contrato, mas a dificuldade por que passava falou mais alto. Contratei trabalhadores e parti para lá. Para começar, logo um impasse: “a casa era mal-assombrada”. Diante do boato, alguns de meus homens relutavam em ficar ali, o que me obrigou a dizer-lhes que fantasmas não existiam e que só “cagões” acreditavam nisso. No entanto, longe de mim a convicção do que afirmara.

Iniciado o serviço, homens mal-encarados começaram a rondar a fazenda e muitos posseiros, quando viam suas roças sendo abraçadas pela cerca, protestavam e ameaçavam.

Nesse tempo eu ficava mais indo do serviço à delegacia do que propriamente trabalhando. Num dos dias falei ao delegado que estava apenas cumprindo minhas obrigações. Disse que era um pai de família, precisava ganhar o pão para meus filhos e que estava lá porque a questão estava na justiça e ainda nada tinha sido decidido. Disse também que eles deviam procurar o dono da terra e não eu, que estava ali apenas cumprindo um contrato.

E assim, construí 22 quilômetros de cerca e, durante um ano, semeei capim em toda a área, sem que precisasse matar ninguém. Minha fama já era tanta que ninguém ousava discutir qualquer assunto comigo estando cara a cara. Até para angariar amigos estava difícil. Só mesmo aquelas pessoas já acostumadas a resolver suas questões fora da lei era quem me procuravam.

E mais uma vez, sem mortes, apenas com conversa e fama, consegui terminar mais uma empreitada. Desde os 17 anos que eu trabalho arduamente para sobreviver. Primeiramente com meu pai, de quem aprendi os segredos da lavoura, e depois, por mim mesmo. Infelizmente, apesar de toda luta e de ter ganho muito dinheiro, nunca consegui guardar nenhum. Normalmente vivi, até aqui, tendo hoje e não tendo amanhã.

Se construía uma casa para minha família, logo tinha de vendê-la para sanar compromissos. Não bastasse, eu bebia muito e brigava demais. Muitas foram as pessoas em que, desumanamente, bati, correndo o risco de vingança. Hoje sei que todas essas aberrações aconteceram por causa da cachaça.

No entanto, matar mesmo, só para vingar familiares. Essa força indomável que me domina eu nunca soube explicar, faz parte de minha constituição. Nasci assim, e à única “Pessoa” que podia ajudar-me nunca dei atenção. Hoje, abri meu coração e minha vida, e a “Pessoa” fala e eu escuto. Agora, aqui condenado a 16 anos de reclusão, até mesmo por crimes que não cometi, sou todo agradecimento. Já não me importa a justiça humana: estou em paz e muito feliz por ter encontrado a razão única de haver nascido.

Nesses 16 anos, quero ter tempo, muito tempo para agradecer incessantemente a Jesus Cristo. Que assim seja!

CAPÍTULO 10

Talvez, a mais difícil das encrencas

Terminada a empreitada de Rubinho Montenegro, fui trabalhar como motorista em Marabá. Já no final de 1973, retornei para Imperatriz, sempre sem dinheiro, sem casa... Muitos dos aluguéis nem pude pagar. Não por ser mau pagador, mas simplesmente por não ter mesmo o dinheiro para quitar meus compromissos. E ali, naquela pindaíba de fazer inveja a qualquer miserável, eu continuava sendo o mais vulnerável dos seres. Melhor do que eu sabiam disso aqueles que precisavam resolver seus perigosos entreveros. Houve tempo em que fui procurado pelas duas partes litigantes e tive que escolher a que melhor me pagasse.

Em 1974, de fato, eu posso ter matado um ser humano ou até mais do que um. Não posso garantir que o tenha feito, mesmo porque foi uma verdadeira batalha travada à noite, em que meu grupo de cinco enfrentou um bando de aproximadamente 200 ciganos saqueadores, entre homens, mulheres e crianças.

Num desentendimento entre meu irmão mais velho, Luís Bonfim, e eles, saiu perdendo meu irmão, que foi assassinado barbaramente. Os ciganos estavam arranchados no Lago da Veada, município, à época, de Paulo Ramos, no Maranhão.

Temendo a reação, minha família só me relatou o acontecido oito dias depois, quando imaginavam que o bando já estivesse fora de meu alcance. De fato, quando soube, fiquei fora de mim. Logo juntei meus irmãos Ludenir e Quincas e os companheiros Pedro Agoniado e Antônio Arruda e partimos, incontinenti, à procura deles. Foram dias difíceis em que o cansaço e a fome só eram vencidos pela sede de vingança.

Nesse tempo os ciganos (ou pelo menos aqueles) não eram organizados e, até certo ponto, não eram respeitadores como hoje. Andavam a pé e não perdiam a oportunidade de saquear mercadorias, armas, munições e animais por todos os lugares por que passavam. Se isto os reforçava, por outro lado os denunciava em cada lugarejo. Não foi difícil seguir-lhes a pista.

Seguindo seus rastros, passamos por São Pedro dos Cacetes, no município de Grajaú (MA), onde nos informaram da passagem dos ciganos, confirmando que os mesmos haviam seguido rumo à localidade de Arranca, às margens do rio Mearim.

Perguntando sempre, soubemos que eles haviam atravessado o Mearim e seguido para a vila de nome Serra do Facão e que estavam arranchados numa pequena aldeia de índios da tribo dos Guajajaras.

Em Arranca, quando chegamos, a tarde caía. Apenas um pequeno clarão do sol sumido a gente podia ver no horizonte. Alugamos um canoa e também atravessamos. Nisso, a noite chegou por inteiro.

Acontece que, no Arranca, um índio da aldeia Guajajara em que os ciganos estavam acampados ouviu nossa conversa e não hesitou em contar-lhes que havia cinco homens, fortemente armados, procurando por eles. Nossa ingenuidade valeu o preço: os ciganos se armaram até os dentes e ficaram nos esperando.

Quando avistamos a aldeia com os ciganos acampados ao lado, já eram 23 horas. Havia uma casa rodeada de estacas a pique e dentro, ao redor de uma fogueira, os ciganos já haviam montado guarda. Muitos deles, com armas na mão, estavam de sentinela, andando de um lado para o outro.

Pé ante pé, mergulhando no mato escuro, entre espinhos e possibilidade de cobras, encostamos na cerca. Por entre as frestas, numa distância de, no máximo, 50 metros, a gente os divisava perfeitamente contra a claridade do fogo.

Antônio, o mais experiente, tentou convencer-me de que, dali mesmo, devíamos matar o quanto pudéssemos, e voltar, porque seria suicídio com apenas cinco, enfrentar mais de 50 homens armados. Não concordei. O sangue me fervia nas veias a cada lembrança de nosso primogênito assassinado. Se fosse possível eu queria todos os homens ciganos ali existentes em troca de meu irmão.

Na verdade, Antônio Arruda parecia prever o fim, tal a insegurança que demonstrava a todo momento. Só agora eu consigo entender toda aquela angústia vinda de um homem que nunca tivera medo de nada.

Todos nós estávamos nas proximidades da cerca, sendo que o Quincas se pusera de cócoras, examinando o movimento deles. De repente, uma cigana parte em nossa direção. Com medo de denunciar-se com o barulho que sua mudança de posição faria, ele permaneceu quieto. Um cigano que acompanhava a mulher focou a lanterna exatamente no rosto do Quincas e, demonstrando uma calma exagerada para meu gosto, apenas disse:

– Já sabemos que estão à nossa procura e que são apenas cinco. Se eu fosse vocês desistiria disso, porque somos mais de 50 homens armados e, certamente, não sobrará um só de vocês para contar o caso.

A essa altura, Antônio insistiu para que matássemos aquele e fôssemos embora, porque o cigano estava falando a verdade. Ainda assim, não concordei.

Mudamos de estratégia, deixando o esconderijo em que nos encontrávamos e indo para uma encruzilhada onde, por uma ou por outra estrada, eles teriam de passar. Sempre relutante, Antônio nos acompanhou.

O burburinho nas tendas ciganas aumentava, conforme o dia vinha clareando. Os grilos já estavam cessando seus cricrilares e os ziguezagues dos pirilampos já não eram vistos: o sol mostrava seu despertar no clarão que se levantava por detrás da floresta.

Foi quando percebemos que eles estavam vindo em nossa direção. Meu coração parecia sair do peito. Estou certo de que os corações dos meus companheiros também não batiam diferente. Eu era o quinto da fila que armamos para o combate. Perturbava-me, sobremaneira, as constantes preocupações de Antônio, que passara toda a noite tendo visagens e me fazendo acender a lanterna para constatar. Chegou a tal ponto que fui obrigado a proibir-lhe qualquer manifestação, pois aquele incessante acender de lanterna bem podia estar denunciando nossa posição.

Ficou combinado que deixaríamos passar cinco deles, quando então começaríamos o tiroteio. Minha intenção era derrubar os cinco primeiros e depois atirar atrás dos outros, imaginando que, de medo, eles iriam debandar. Ledo engano.

Talvez pela inquietação de Antônio durante toda a madrugada, eles ficaram sabendo de nossa posição, tanto que enquanto esperávamos pelos primeiros cinco, já o tiroteio começava pelos demais que haviam nos cercado durante a noite. E o que nos parecia uma luta pela vitória, passou a ser uma luta pela vida, tal a enrascada em que nos vimos metidos.

Tínhamos munição para, pelos menos, cinco horas de combate e durante uma hora não fizemos outra coisa senão atirar em direção de onde vinham os tiros dos ciganos.

E Antônio, o mais experiente de nós, continuava aflito. Várias vezes agarrei-o, impedindo que saísse do esconderijo. Numa das vezes, porém, enquanto eu recarregava minha arma, num grito de desespero ele levantou-se e se pôs a correr, exatamente para o lado onde a maior parte dos ciganos estava de tocaia. Vendo-se no meio deles, Antônio descarregou sua arma sem perder um tiro. Depois, foi apanhado, degolado e todo furado com facas.

Até hoje não me sai da cabeça aquela cena e a lembrança de sua agonia antevendo o fim. Com certeza ele previra sua morte, pois para um homem como ele, incapaz de demonstrar medo ante situações até piores, não era normal aquela impaciência durante toda a noite.

Restamos nós quatro, respondendo o tiroteio. As balas zumbiam sobre nossas cabeças, algumas descascavam as finas árvores a menos de centímetros de nós. De repente, senti um forte repuxão no braço direito. Quando quis erguê-lo, percebi que a mão estava dormente. Não senti dor alguma, mas percebi que uma bala havia me atingido. Notei a mão cheia de sangue, mas não tive tempo nem de olhar onde havia sido atingido. Tomei a arma com a mão esquerda e continuei respondendo ao ataque.

Com a graça de Deus, a cada instante os tiros deles foram diminuindo até cessar completamente. Acho mesmo que eles próprios se mataram, porque nos cercaram entre as duas estradas e toda bala de um grupo passava zunindo para o outro lado, onde se encontrava o outro esconderijo. Havia um deles que não se cansava de gritar:

– Gente, o Ganjão, que matou o irmão de vocês, não está no bando não. De lá mesmo ele desapareceu com medo de represália. Nós não temos nada com a morte do homem, não.

Esperamos ainda alguns minutos que bem poderiam ser definidos como horas, tal a tensão que respirávamos naqueles momentos. Meus irmãos Laudenir e Quincas, assim como Pedro Agoniado, nada haviam sofrido. Apenas Antônio Arruda fora degolado e eu estava com o dedo indicador da mão direita dependurado.

CAPÍTULO 11

A volta

Mantendo a calma pelo tempo que nos foi possível, acabamos por nos erguer lentamente. Antecipei essa ação porque estava perdendo muito sangue e já não suportava a sede. Percebi que o perigo que corria erguendo-me no mato não era menor que os minutos que perdia para estancar o sangue.

Para sorte nossa, os ciganos já haviam saído do lugar e sem muita precaução começamos a desfazer os oito quilômetros que nos separavam do rio que banhava a vila de Arranca. Agora, além da fraqueza, também a dor estava se tornando insuportável. Nas margens do rio Mearim, tive um desmaio e meus companheiros acharam mesmo que já não voltaria a mim. Contudo, alguns minutos depois, tornei a abrir os olhos e ter lampejos de consciência. Então disse pra eles cortarem parte dos meus cabelos e queimar com minha camisa, amarrando as cinzas sobre o ferimento. Eles assim fizeram e o sangue estancou.

Conseguimos uma canoa e atravessamos para o outro lado, onde havíamos deixado nossa condução. Como o dono do lugar possuísse um radioamador e já tivesse avisado a polícia, ela já nos esperava e veio logo dando ordens de prisão. Ante os olhares surpresos de meus companheiros, adiantei-me, engatilhei o rifle e falei:

– Há muitos dias vocês sabiam do assassinato de meu irmão. Meus familiares cansaram de lhes avisar sem que qualquer iniciativa fosse tomada. Por isso resolvemos fazer justiça com nossas próprias mãos. Estou chegando de uma verdadeira guerra, onde matamos e perdemos um companheiro, e não me faz diferença continuar a batalha aqui e agora.

Eles, percebendo que me encontrava como uma onça ferida, não duvidaram um segundo sequer de que eu estava falando sério. O rifle continuava engatilhado no peito do chefe da guarnição. Então ele respondeu, quase gaguejando:

– Está bem! Baixe a arma. Vão se cuidar que iremos lá ver de perto o que aconteceu. Depois resolveremos essa questão.

Apesar de meu ferimento, disse para meus companheiros voltarem com eles para dar um enterro digno ao Antônio Arruda, nosso companheiro. Eles foram e ficaram horrorizados com a cena que viram. Muitos ciganos mortos e nosso companheiro degolado e esfaqueado barbaramente. Trouxeram-no até Arranca e lá mesmo fizemos as exéquias do companheiro, partindo a seguir para Grajaú, onde foram feitos os primeiros curativos para que eu conseguisse chegar até Imperatriz.

O mais estranho de tudo isso é que nunca nos pediram explicações, nem da morte de meu irmão nem do massacre cigano. Acho que a polícia deixou o problema como resolvido, pois as partes em questão, por elas mesmas, praticaram a justiça.

É interessante notar que a bala que me atingiu feriu o dedo indicador da mão direita. A princípio, não devia representar nada de grave. Mas confesso que nunca perdi tanto sangue em toda minha vida. Logo que cheguei a Imperatriz, procurei o Dr. Claumir Simões, no Hospital Santa Maria. Ele examinou, mandou que se fizesse uma radiografia, e por fim – não sei se brincando ou falando sério –, disse-me que havia a possibilidade de ter que amputar o dedo. Imaginando que estivesse brincando, pilheriei também:

– Doutor, o senhor não vai privar-me de meu ganha-pão, vai?

Ele achou muita graça e, mesmo assustado, ri com ele.

Alguns meses depois eu já estava totalmente recuperado. O dedo ficou normal, o susto passara e então voltei a trabalhar. Fiquei com meu velho e saudoso pai de junho de 1974 a maio de 1975. Se todos já me conheciam como pistoleiro, traficante, grileiro, contrabandista..., agora também à fama era somado o pacto com o diabo, pois já diziam que tinha o corpo “rezado” e que as balas dos inimigos não conseguiam me tirar a vida.

Mesmo assim, do fundo de minha alma, eu sentia que era um homem normal, um homem que sentia medo também e que, muitas vezes, enfrentava situações suicidas só para não frustrar aqueles que assim falavam de mim. Para ser sincero, nunca tive vocação para assassino. Ainda que uma força estranha exigisse de mim um pacto de proteção familiar que eu nunca assinara, eu pensava mil vezes antes de puxar o gatilho contra quem não tivesse afetado minha família.

Mesmo no massacre dos ciganos, eu ainda tinha comigo o conforto de não saber se uma de minhas balas houvera sido fatal a algum deles. Com certeza, nunca apertei tanto o gatilho como naquela madrugada, mas eram tiros a esmo, para o lado de onde nos vinham as balas. Eram tantos os tiros que, por cima das trincheiras, a gente podia notar pequenas nuvens de fumaça formadas pela pólvora queimada dos cartuchos. Como não ventasse, elas pairavam logo acima das explosões, o que nos indicava melhor o alvo. Só que assim como nós, eles também deviam estar bem protegidos e as balas dificilmente rompiam as centenas de pequenos troncos que lhes obstavam a passagem. Só mesmo por sorte do atirador e azar do entrincheirado algumas encontravam o caminho mortal.

CAPÍTULO 12

Fazenda Cipó Cortado

Seis de maio de 1975. Desfrutava eu de um dos curtos momentos de descanso que tive na vida, quando o Guerreiro, peão que havia trabalhado comigo no amanho das terras de Rubinho Montenegro, no Trecho Seco, apresentou-me dois homens desconhecidos. Um se chamava Rubens, gerente da Fazenda Cipó Cortado, na região do Pindaré; o outro, de nome Itamar Lourenço Ribeiro, era um advogado que trabalhava para o grupo que se dizia proprietário da Fazenda Alvorada, contígua à fazenda Cipó Cortado.

Logo que se identificaram, lembrei-me que havia lido nos jornais que o gerente geral das duas fazendas, Antônio Marcos, havia sido assassinado pelos invasores. O rumor que corria era que Antônio Marcos era muito bom para os posseiros e que até os ajudava para que as terras ocupadas fossem-lhes cedidas gratuitamente.

Em Mucuíba, hoje Senador La Roque (MA), morava um tal de Madeira, dono de farmácia e inimigo figadal dos latifundiários. Ele insuflou os posseiros para que matassem Antônio. Segundo Madeira, essa atitude afugentaria os verdadeiros proprietários e as terras ficariam definitivamente com eles.

Imaginando-me alheio aos acontecimentos, eles não tocaram nesse assunto, limitando-se ao convite para que eu empreitasse o desmate de 100 alqueires de suas terras. O pagamento era régio e minha necessidade, a de sempre, pois vivia sem dinheiro, apesar de tantas vezes ganhar bastante. Aceitei o trabalho, mesmo sabendo dos riscos.

Assinado o contrato, logo chamei quatro de meus homens de confiança – Natal, Guerreiro, Cícero e Nilo – e recomendei que procurassem peões para que, no dia 15 de maio de 1975, o serviço fosse iniciado. Eles arrebanharam 60 trabalhadores que se apresentaram no dia marcado. Eu já estava com centenas de machados, foices, facões e motosserras preparados e, sem delongas, partimos.

O advogado retornou para Goiânia, onde moravam os que se diziam donos legítimos das terras, enquanto Rubens foi comigo para demarcar o local da área a ser desmatada.

A estrada era péssima e chovia muito. Por isso o caminhão não conseguiu chegar ao destino, deixando-nos na entrada da Fazenda Cipó Cortado. Como nosso destino era a Fazenda Alvorada, passamos a noite do dia 17 perto de uma cancela, onde havia um morador de nome Nílton, que tomava conta da estrada.

Mandei que o caminhão voltasse para Imperatriz e que viesse me buscar uma semana depois, quando eu deveria estar ali naquele mesmo local, esperando pela condução. Naquela noite o Nílton me aconselhou a desistir, afirmando-me que seria praticamente suicídio alguém tentar expulsar os posseiros daquelas terras. Disse-me que eram atrevidos e que já haviam morto o gerente e coisas mais.

– Ninguém, até hoje – assegurou-me Nílton –, conseguiu atravessar a sede deles, que fica mais abaixo. E vocês terão que passar lá, porque só existe esta estrada para se chegar à Fazenda Alvorada, onde o senhor está dizendo que irá fazer as derrubadas.

Tentei demonstrar que não estava preocupado, embora um arrepio tenha me passado pela espinha. Pelas tantas experiências que já tivera, sabia que muitos posseiros não tinham qualquer escrúpulo em tirar a vida de alguém, desde que as circunstâncias lhes fossem favoráveis. No entanto, também aprendi que não existem homens valentes e sim aqueles que reagem forte no momento certo, já que todo ser vivo tem medo do desconhecido.

E, mais uma vez, a triste fama me obrigou a caminhar rumo à morte. Ainda que quisesse, eu sentia que não podia mais recuar de qualquer perigo, pois era na pretensa coragem que eu encontrava serviço todos os dias numa terra onde as leis dificilmente eram observadas.

Se dissesse que dormi aquela noite, estaria mentindo. Aquela recomendação deixou-me extremamente preocupado, pois acredito que muitos sabem o dia em que a morte lhe aperta o cerco. Lembrei-me de Antônio Arruda, meu velho e corajoso companheiro, que previu sua morte naquela noite de enfrentamento aos ciganos. Também ele estava agoniado, querendo desistir. Ainda hoje fico a imaginar como nos tornamos inconseqüentes diante de certas idéias fixas.

Sei que, se disser que me benzi e pedi a proteção de Deus, muitos acharão graça e ficarão sem entender como um homem como eu, que carregava a fama dos piores adjetivos criminais, podia ter a pretensão de pedir qualquer coisa a Deus. No entanto, eu só sou bandido para o mundo, pois minha consciência sempre esteve tranqüila e em paz, porque nossos atos perante os homens não têm a mesma conotação para Deus. Jamais, por maldade ou friamente, tirei ou mandei tirar a vida de alguém. Se o fiz algumas vezes foi para vingar meus familiares ou para defender minha própria vida. E disto, a consciência não me acusa.

Às 4 horas, contra todos os conselhos da sensatez, acordei o pessoal, arrumamos as tralhas, pusemo-las nas costas e partimos. Como responsável, fui na frente, acompanhado de Rubens, do Nilo, do Cícero, da cozinheira e de mais seis peões, dos quais nem o nome eu sabia.

O trajeto a ser feito era de oito quilômetros e não demorei a receber a notícia de que os posseiros já sabiam de nossa presença e estavam de tocaia dentro das matas. Isso me deixou ainda mais aflito, porque toda a estrada era por dentro de mata fechada e nada seria mais fácil do que ficar ali escondido, com toda chance de pontaria. Mesmo assim eu seguia: eu não podia recuar. “Eu era um homem corajoso, alguém que amedrontava todo mundo e não tinha medo de ninguém”.

Enfim, às 7 horas, chegamos na divisa das duas fazendas, no lugar chamado Barro Vermelho. Havia ali três barracos de palha. Encostamos. Aparentemente, só gente humilde: uma senhora com um garoto de 11 anos, socando arroz num pilão; um homem com malária, tremelicando de febre numa rede, e um rapaz de cócoras no terreiro, próximo de alguns tições de lenha, esquentando-se do frio daquela manhã.

Achei estranho que naqueles três barracos só houvesse aquelas pessoas. Mas logo fiquei sabendo que o dono deles era um tal de Jesus e que seus homens, mais de 30, estavam escondidos logo na frente, esperando pela nossa passagem.

Enquanto eu descansava um pouco, o Rubens foi ao terreiro e começou a fazer perguntas ao rapaz (de nome Otávio) que estava acocorado à beira da fogueira. De repente, o rapaz ergueu-se, já com uma pistola na mão, apontada para o peito de Rubens. Para sorte deste, a arma estava travada e o rapaz atabalhoou-se no manejo, dando tempo para que Rubens sacasse a sua e disparasse primeiro. Em seguida, Cícero e eu também atiramos e um dos meus tiros foi no homem que estava na rede (José), porque ele também já havia sacado sua arma e disparado um tiro. Um caroço de chumbo perdido (pois todos nós estávamos de escopeta), acertou a perna da mulher que estava com a criança e, por causa disto, logo o boato surgiu que eu, somente eu, havia feito uma chacina, eliminando até mulheres e crianças.

Terminado o tiroteio, providenciamos a remoção da mulher e da criança para Imperatriz e constatamos que os dois homens, que ali estavam para nos eliminar, faziam parte do grupo que assassinou o gerente Antônio Marcos, pois as armas que portavam eram as que pertenceram a ele. Nisto se resumiu nossa sorte, porque as pistolas eram pesadas e um tanto sofisticadas, o que nos deu tempo para a reação. Fosse um simples 22, Rubens estaria morto.

CAPÍTULO 13

Depois da primeira armadilha

Recobrada a calma, resolvemos prosseguir viagem. Na localidade conhecida como Açaizal, o Rubens ficou sabendo que Neguinho era parente do Otávio, um dos que participaram do assassinato do gerente. Segundo informações, ele estava escondido nas margens do Rio Pindaré e também ajudara na tocaia que pôs fim à vida de Antônio Marcos.

Como já fossem 21 horas, resolvemos encostar numa casa e pedir que nos fizessem alguma coisa para comer e que nos dessem permissão para ali pernoitar. Pedido aceito, jantamos e nos recolhemos. Agora, éramos cinco: Rubens, Nilo, Cícero, Guerreiro e eu. Os demais peões que nos acompanhavam dispersaram-se, talvez retornando ao grupo que vinha mais atrás.

Muito preocupados com o que acontecera, quase não dormimos. Era um tal de limpar garganta, de balançar de rede e de acender lanternas que fez daquela noite um arremedo do inferno. Numa hora em que alguém observou que nunca vira noite mais comprida, Rubens comentou:

– Não estava nos meus planos vingar a morte de Antônio, mas já que comecei, vou até o fim. Gostaria de saber – dirigiu-se a mim – se você se opõe.

Disse-lhe que aquilo era uma questão dele, mas que eu o acompanharia, porque não era homem de deixar amigo na estrada.

Então, quando o dia amanheceu, fomos procurar a casa onde nos disseram que Neguinho se encontrava. No Barro Branco nos informaram que Neguinho estava na roça e, incontinenti, Rubens, Nilo e Cícero foram à sua procura. Eu permaneci na casa de outro que, já sabíamos, também havia participado da morte do gerente.

Enquanto o vigiava para não fugir, os três chegaram dizendo que Neguinho, ao perceber-lhes a presença, tentou fugir, mas Nilo o acertara em cheio, fazendo-o tombar sem vida.

Disse-lhes, então, para voltarem à roça e enterrarem Neguinho, pois não era justo deixar um ser humano aos urubus e aos cães. Eles assim o fizeram.

Aí retomamos caminho, com Rubens trazendo o outro que ficara sob meus cuidados e que também participara da morte de Antônio. Em determinada parte do caminho, Rubens ordenou-lhe que corresse e em seguida eles o abateram com uma rajada de escopetas, deixando o corpo a esmo.

A esta altura eu já nem sabia qual era minha missão naquela jornada. Saíra para derrubar 100 alqueires de mata e, de repente, estava envolvido na maior confusão do mundo. Mais uma vez estava sendo usado de forma infame, ficando com a responsabilidade de muitos crimes, quando apenas estava na hora e no lugar errados. Eu não fora lá para matar ninguém e nem recebera para isso. Mas a vida, dura e cruel, parecia levar-me sempre para esses caminhos. Só me restava o duro consolo de absorver a dura verdade: “Diga-me com quem andas e dir-te-ei quem és”.

Com tudo isso acontecido, a noite do dia 19 de maio de 1975 também chegou. Quatro mortos já haviam ficado para trás e seria ingênuo se dissesse ao leitor que sou inocente de todas elas. Atirei sim e qualquer um atiraria ante a iminência de ser alvejado ou vendo alguém de seu grupo sendo executado. Se me acusarem de omissão por não ter tentado demover meus companheiros da idéia fixa de vingança, até que poderei aceitar, porque naqueles dias não dei qualquer opinião sobre o que deviam ou não fazer. Eles eram homens formados e cientes das imputações que seus atos iriam acarretar. Também não quero passar por nenhum santinho, mesmo porque sei de minhas fraquezas. Para mim, o certo, já que estava junto, era junto permanecer até o fim. Aí reside todo meu crime.

A caminhada a pé era longa, mais de 100 quilômetros. Por isso, só no dia 21, já com a noite bem avançada, fomos chegar ao povoado Mucuíba. Nada mais era preciso ser feito, pois quando os demais posseiros souberam das desditas dos companheiros e de que eu estava na área, escafederam-se, desapareceram até mesmo sem levar as próprias redes. Em Mucuíba, aluguei um carro, vim para Imperatriz. Desci do carro fretado, peguei o meu que estava na garagem e, juntamente com os companheiros, fugi para Goiânia. Ainda que a notícia já houvesse se espalhado por todos os recantos, ninguém nos incomodou.

Chegamos a Goiânia no dia seguinte. Rubens criava cachorros de raça e, alguns dias depois, ao estar no meio deles, foi mordido por um. Mas Rubens não ligou, dizendo que não era a primeira vez que aquilo acontecia. Também nós não ligamos, porque vivíamos com ferimentos em vista de nosso tipo de trabalho, sempre dentro dos matos. O que ele desconhecia é que o estado de Goiás, principalmente em Araguaína (hoje pertencente ao Estado do Tocantins), fora sempre local em que casos de raiva canina eram freqüentes.

Fomos então levados pelo advogado Itamar Lourenço Ribeiro para um sítio de sua propriedade, em Aparecida de Goiás, lá chegando no dia 24 de maio, exatamente no dia em que a polícia entrava para nos caçar nos lugares dos crimes. Nessa altura, apenas Nilo e Rubens estavam comigo; os outros dois preferiram defender-se a seus modos, evadindo-se para outros lugares.

Tudo parecia bem. Iniciamos um período de rotina, bem a contragosto de meu espírito atribulado. Estávamos ali esperando o tempo passar, a poeira descer e a população cessar os comentários. Os jornais não noticiavam outra coisa e a polícia se via forçada a dar uma explicação à população, que já não a via com bons olhos há um bom bocado de tempo. É que minha fama de bandido era grande e, mesmo assim, eu andava solto e, na maioria das vezes, dentro da própria cidade infestada por eles, policiais.

No dia 30 de maio, quase uma semana depois do acidente da mordida do cachorro, eu já estava de pé, esperando o café que estava sendo coado, quando percebi que Rubens também se levantara e, com a toalha enrolada ao pescoço, foi a uma pia que ficava bem em frente. Ainda pareço vê-lo colocando a pasta na escova e se preparando para lavar o rosto. De repente, quando a água jorrou e ele a arremessou no rosto, foi como se tivesse sido atingido por um tiro de escopeta: caiu duro, em espasmos de morte.

Imediatamente o socorremos, mas quando chegamos ao hospital ele já estava morto. Segundo os médicos, um dos tantos ferimentos que tivera em seu canil ocasionara-lhe a “raiva”. Por não acreditar no valor da vacina anti-rábica, morreu estupidamente.

Comuniquei o fato ao Dr. Itamar para que tomasse providência e retornei para o sítio, onde fiquei aguardando o desenrolar dos acontecimentos.

A morte de Rubens talvez tenha sido o primeiro toque de Deus à minha alma empedernida. Lembrar o amigo disposto, cheio de ódio e de desejos de vingança dias atrás, possuído de grande egoísmo em querer tudo para si, e vê-lo agora inerte, frio e sem vida, foi como um relâmpago que se vê numa tempestade longínqua que se aproxima: parecia fraco porque estava longe, mas era forte em sua origem... e se aproximava de mim.

CAPÍTULO 14

A volta para o Maranhão

Com toda certeza, ninguém paga mais caro seus desvarios do que os fugitivos da polícia ou daqueles que lhes juram vingança. Duendes e fantasmas os perseguem por meio de miragens que simples ventos fazem reviver na sombra de um ramo que balança numa noite de luar. Tudo que para muitos é poético e bonito, para outros são almas penadas à espreita de uma real oportunidade de vingança. Um rato que derruba uma tampa, bem pode ser o inimigo que adentra sorrateiro e o roçagar de uma barata vadia no pescoço, logo se transforma no fio afiado de uma navalha, penetrando na carne.

Um fugitivo assim, depois de anos nesta agonia, bem merece as benesses da lei que diminui a pena por bom comportamento. Nisso a lei é sábia, porque a parte maior da dívida já foi paga com a eterna, triste e dolorosa vigilância de cada segundo que ele se impõe. Não há paz, não há sono tranqüilo, não há sonhos bonitos. Os pesadelos passam a fazer parte das noites que se transformam num inferno em vida. Pessoas assim, com certeza, gostariam que as noites não existissem.

Todos aqueles que se transformam ou são transformados em escória humana lamentam a desdita em cada momento de reflexão. Não é verdade que uma prostituta, um alcoólatra, um assassino, em suma, todos aqueles considerados escória humana pela sociedade, assim o são por pura opção de vida. Não há ninguém no mundo que mais padece do que essas pessoas. Muitas vezes elas pensam em mudar de vida, mas o caminho pelo qual um dia entraram afunilou-se, criou altos e intransponíveis muros laterais. Não bastasse, atrás de si, sempre uma grande turba que, como cães esganiçados, fecha-lhes o retorno e os obriga a caminhar, caminhar até o fim. Uma coisa aprendi nessa minha triste vida atribulada: atrás de um bandido, quase sempre há um “homem honrado”.

Hoje, aqui sozinho, amarguro todo mal que fiz. Sei que os 16 anos que terei de viver na companhia de quatro pequenas paredes serão poucos por todas as minhas fraquezas, assim como não duvido de que muitos daqueles que são responsáveis por esta minha desdita um dia terão, também, duras contas a acertar com o Senhor Deus, a quem é impossível enganar... ou comprar.

Agora, guinchado por Deus por cima “do muro que parecia intransponível”, sinto que fui usado pelos outros, principalmente por políticos que me tinham como arma para levar a termo as suas gananciosas pretensões. Imagino, até, que, mesmo sem o merecer, Deus me protegeu de tantas emboscadas, para que um dia eu tivesse a oportunidade de dizer ao mundo onde se escondem as maiores víboras do caos social de nosso País.

Vocês irão tendo a oportunidade de comprovar o que estou dizendo, na continuação deste meu depoimento, que ora faço como se estivesse diante de meu Confessor Supremo.

Quando sorrateiramente resolvi retornar ao Maranhão, encontrei na casa de meus familiares um verdadeiro calhamaço de jornais, todos afirmando que eu havia feito a maior chacina que já houve no Maranhão, com dezenas de mortos, entre eles, mulheres e crianças. De repente, sem qualquer culpa direta, eles me transformaram no maior terror do Estado. Nunca pararam para pensar o grande mal que estavam me fazendo com o simples intuito de vender jornais. Passei a ser caçado como a mais temida das feras.

Muitas vezes percebi que policiais me viam e reconheciam, mas nunca me abordavam no momento, preferindo formar destacamentos como se fossem enfrentar um exército inteiro. Ninguém que se dizia honesto, ou que realmente era honesto, queria negócio comigo. Sem opção, acabei aceitando, novamente, um convite dos mesmos proprietários das terras do Pindaré onde aconteceram várias mortes. Sempre escondido, voltei a Goiânia, acertei os detalhes e viajei para Cáceres, uma cidade do Mato Grosso.

Eu já não tinha sossego nem destino. Tornara-me uma folha seca, indo e vindo ao sabor dos ventos. A cada dia fui sendo mais encurralado, enfronhando-me mais e mais nas coisas sujas de homens maus e perversos que detinham o poder, inclusive sobre a vida das pessoas. E a minha, sem que o soubesse, agora era posta em xeque... porque eu estava sabendo demais.

CAPÍTULO 15

Cáceres, Mato Grosso

Como permanecer no Maranhão tornava-se inviável, caí, mais uma vez, noutra armadilha. Essa, porém, foi a mais sórdida, porque senti a crueza e as incógnitas de um verdadeiro homem sem caráter, sem dignidade, sem qualquer sentimento de gratidão e amizade.

Depois de resolver – ainda que sem querer – o problema do Dr. Itamar Lourenço Ribeiro, proprietário das fazendas Cipó Cortado e Alvorada, lá no Pindaré, sem ter qualquer outra opção, aceitei do mesmo o encargo de “limpar” a Fazenda Três Marias, área que dizia possuir em sociedade com alguns políticos do Mato Grosso, na região de Cáceres.

A fazenda ficava nas margens do Rio Paraguai, que divide, ao norte, uma boa parte do Brasil com a Bolívia. Era uma terra muito cobiçada porque quase fazia parte do Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense, onde já se instalavam grandes criadores de gado e, principalmente, traficantes de droga.

Essa área era também pretendida por um velho de nome Nestor, proprietário de um latifúndio na Bolívia, separada da de Três Marias apenas pelo Rio Paraguai. Nestor era um homem sem escrúpulos, violento e protegido por políticos da região e, como Itamar Ribeiro, também se dizia dono da Três Marias.

Sem nunca imaginar a armadilha, aceitei a empreitada e viajei para lá. Terra diferente, gente esquisita, posseiros mais surpreendentes ainda. Viviam lá os “bugres”, índios da região que, ainda menos que os nossos posseiros daqui, não davam valor à vida. Defendiam seus interesses de qualquer maneira e com os meios que lhes fossem possíveis.

Não bastassem os índios em pé de guerra, havia ainda a trama abjeta do Dr. Itamar, que armara minha morte como “queima de arquivo”, porque eu sabia demais da chacina do Pindaré. Sem suspeitar de nada e também sem encontrar outra saída fui, inocentemente, como um boi vai ao matadouro.

Dr. Itamar já tentara muitas vezes se apossar da Fazenda Três Marias, mas nunca conseguira. Dezenas de homens seus já haviam sido mortos e ele esperava, confiante, que o mesmo acontecesse comigo.

O trajeto teria que ser feito de canoas e, já nas primeiras viagens, talvez por não me conhecerem direito, metralharam alguns de meus companheiros. Fiquei sabendo que o mandante era um velho de nome Nestor e fui procurá-lo em sua residência, na cidade de Cáceres. Ainda que tivessem me avisado que seria loucura, bati palmas no portão de sua casa. A recepção foi feita com uma carabina engatilhada no meu peito e com agressões verbais de que nunca irei me esquecer. Nunca fui tão humilhado em toda minha vida. Pelo menos, nunca vira alguém irado se dirigir, daquela maneira, a um cão que tivesse feito algo de errado.

Percebendo que ele estava apenas buscando um motivo para me matar, rebaixei-me, dizendo-me inocente e que estava ali exatamente para saber qual era a verdadeira história sobre a Fazenda Três Marias. Respondeu-me que nem queria perder tempo com qualquer explicação, porque a fazenda era dele e, sem ordem dele, ninguém entraria vivo lá.

Tão logo baixou a guarda, já com tempo para sacar a minha, mostrei a ele que também era homem como ele se dizia e que iria até lá, porque havia assumido um compromisso e iria cumpri-lo. Então ele enxotou-me como a um cão, batendo o portão na minha cara e voltando de costas até à sala de sua casa. Confesso que foi uma medida inteligente da parte dele, pois, àquela altura, eu já havia perdido por completo o equilíbrio emocional.

Rodei nos calcanhares e fui ao primeiro armazém “fazer o rancho” para viajar. Era o dia 20 de junho de 1975. Enquanto arrumava as compras, chega-me, outra vez, o velho Nestor, querendo saber o dia em que eu iria para a Fazenda Três Marias.

Para ser sincero, poucas pessoas me foram mais antipáticas que o velho Nestor. Talvez porque nunca tivera passado pela humilhação que ele me impôs e, quem sabe, também por eu achar que todo mundo, pela fama que já carregava, teria que tremer na minha frente. Acontece que lá ninguém me conhecia e minha fama não representava nada. Mesmo assim repeli-o grosseiramente, dizendo que não era seu funcionário e que não tinha qualquer satisfação para dar a ele.

– E tem mais – concluí – vai saindo de minha frente, porque do contrário não me responsabilizarei mais pelo que pode acontecer. Se não quiser perder a oportunidade de me matar na beira do rio, pode desde já ir montando tocaia, porque qualquer dia destes estarei passando por lá.

Estava com tanta raiva do velho que, do mesmo jeito que ele, um pouco antes, também eu estava somente esperando que ele me desse um motivo para resolver, ali mesmo, a nossa questão. Gato velho no ramo, ele percebeu e foi saindo de mansinho, só Deus sabe, arquitetando quantos planos para me assassinar.

Saindo dali, fui direto à delegacia da cidade dar queixa do velho que queria impedir que eu fosse desenvolver trabalho na fazenda de “um amigo”. De nada adiantou, porque Nestor era homem poderoso, protegido pelos políticos situacionistas do lugar, políticos que tinham a polícia nas mãos. O descaso com que me receberam e os conselhos para que eu voltasse para minha terra foram bastantes para que eu percebesse o grande perigo que estava correndo.

Mesmo assim – talvez desgostoso da própria existência – resolvi alugar uma canoa a motor e descer o Rio Paraguai. Mais ou menos no meio do percurso, a emboscada. As folhas das árvores chegavam a balançar com os tiros que vinham de um barranco. As balas ricocheteavam na canoa ou a furavam de um lado a outro. O motor foi atingido e parou de funcionar, mas a velocidade era muita e me levou para a outra margem. Mesmo assim eles continuaram atirando e antes que a canoa naufragasse, eu consegui pular na margem, escondendo-me na mata. Comigo, apenas a escopeta, dois revólveres, o facão e um embrulho que peguei ao acaso no afobamento de pular em terra firme.

Apressadamente corri para o interior da mata, escondi-me na sapopemba de uma árvore espessa e fique assuntando. Depois de alguns minutos, apareceu uma outra canoa a motor, encostou, apanhou os cinco homens que me prepararam a emboscada e desapareceu na curva do rio. Respirei um pouco aliviado.

Quando desci para ver se recuperava alguma coisa, percebi que a canoa havia afundado e que não havia dela qualquer vestígio. Cortei uma vara comprida e tentei localizá-la no fundo, mas todos meus esforços foram em vão. O rio, para azar meu, ali era muito fundo e corrente.

Passei uma água no rosto, sentei em cima de uma raiz e tentei organizar os pensamentos. Depois, calmamente, fui verificar o que eu havia salvo e, para maior desespero, percebi que não era nada de que eu pudesse me alimentar. Ainda que soubesse que a ansiedade me fosse alimento para o resto do dia, fiquei com medo dos dias seguintes, porque nunca pensara em me defender numa situação daquelas. Decidi, por isso, que ficaria ali, disposto ao que desse e viesse, mesmo porque não via outra saída.

Pensei em caminhar a pé margeando o rio, mas, além de mal conhecer a Fazenda Três Marias, ainda não tinha idéia da distância que me separava dela. Haveria de passar uma canoa, ainda que fosse dos capangas do velho Nestor e aí eu tentaria pedir socorro. Deixei a escopeta em posição, com duas caixas de cartuchos estendidas ao lado (a munição sempre andava nos bolsos), os revólveres também prontos e me ative a arremessar gravetos de mato no remanso que se fazia na minha frente.

A noite chegou sem que alguém passasse por lá. Como eu previra, a fome não veio. Sem mudar de posição, fiquei ali sentado, pensando na vida, na triste vida que o mundo tinha reservado para mim. Gritos e urros metuendos de animais noturnos ecoavam por toda a floresta, criando um cenário fantasmagórico para minha consciência conturbada. E mais uma vez, naquele antro de terrível angústia, eu olhei para o céu negro e ensaiei, medroso, uma pergunta: Meu Deus, por quê?

Como resposta, apenas o bramir de feras no cio, o chirriar de corujas curiosas e o farfalhar das folhas ao vento que prenunciava tempestade. Quando em vez eu ouvia animais que subiam ou desciam as margens e que se espantavam comigo, mas nunca pude saber do que se tratava, porque minha lanterna tinha ido no naufrágio. Nem a lua, que tanto poderia ter me ajudado, apareceu. Em seu lugar, uma tremenda tempestade que parecia pôr a floresta abaixo. Mas eu já não estava me importando com nada, nem com pedaços de galhos que caíam bem perto de mim.

Sem sentir sono nem fome, vi o dia amanhecer. Minha idéia continuava fixa: eu não sairia dali. Nilo, que já se encontrava na Fazenda, haveria, nos próximos dias, de sentir minha falta e talvez subisse para saber o que estava acontecendo. E o silêncio cruel consumia as horas sem que nada acontecesse.

Ao meio-dia, senti minha tripas roncarem e pude concluir que meu metabolismo voltava ao normal. Pensei então em fazer alguma coisa, mesmo porque não tinha previsão de quanto tempo ainda teria que viver aquela enrascada em que me metera.

CAPÍTULO 16

Três dias de espera e sofrimentos

Dias amanheciam, noites chegavam, sem que nenhum movimento de canoas ou de gente acontecesse no rio. Comida não seria problema se, ao menos, eu tivesse comigo um pouco de sal e uma caixa de fósforo. Mas tudo se fora com o naufrágio. Mutuns, jacutingas, araras, papagaios e jacus eram-me presas fáceis, pois viviam sobrevoando as árvores em que me encontrava, mas eu só conseguia deglutir aquelas carnes cruas, nos momentos mais drásticos da fome. Então, eu cortava pequenos pedaços e os engolia sem mastigar, juntos com um boa golada de água, como se estivesse tomando um comprimido. Descia-me melhor os palmitos que existiam em profusão ao lado de um igarapé que descia bem perto do lugar onde me encontrava.

Minha roupa molhava e enxugava no corpo e meu rosto e braços já não tinham lugar para mais picadas de mutucas de dia e mosquitos à noite. E eu ali, certo de que seria suicídio me meter naquela floresta, sem qualquer destino. Felizmente, no terceiro dia, ouvi o zoar de um motor. Cheguei a pensar que estava delirando, mas, alguns minutos depois, o som já era claro e promissor, porque vinha subindo o rio e só podia ser o Nilo.

Quando o reconheci, me veio uma alegria e uma emoção tão forte que não pude conter as lágrimas. Ele desceu e eu o abracei fortemente, como o mais dependente dos meninos. Pedi que sentasse ali comigo e contei-lhe tudo o que aconteceu. Então ele me aconselhou a voltar para Goiânia, acertar o recebimento, enquanto ele seguraria as pontas por lá. Ainda que me doesse deixar o amigo num fim de mundo daqueles, sujeito a todo tipo de traição, fui obrigado a aceitar a sugestão como a melhor para os dois.

O que Nilo e eu ainda não sabíamos é que o Dr. Itamar havia me empreitado aquele serviço exatamente para eliminar-me como “queima de arquivo”. Isso eu só fui saber quando consegui chegar ao hotel de Cáceres, onde o dono, que sabia de tudo, resolveu contar-me, dizendo que jamais se conformara com traição daquele tipo. Só então me dei conta da realidade.

Ainda que temesse pela sorte de Nilo, viajei imediatamente para Goiânia e mal desembarquei, liguei para o Dr. Itamar. A pergunta foi imediata:

– Onde você está?

Sabendo de suas intenções, menti:

– Estou em Uberlândia. Como já cumpri nosso contrato, quero que deposite meu saldo na conta que combinamos e vá receber o serviço. O Nilo está lá esperando por você.

Sem saída, ele concordou e logo à noite viajei para Bacabal, indo pedir guarida à minha irmã (que carinhosamente a chamávamos de Gunga. O nome dela é Maria dos Anjos). Ela concordou em ajudar-me e montou um pequeno comércio para que eu pudesse trabalhar para o sustento de minha família. Nesse tempo, Nazaré, viúva de meu irmão Luís Bonfim, aproveitou também a minha fama para receber dívidas de muitos inadimplentes. Depois de duas ou três cobranças, todos os que estavam atrasados procuraram minha cunhada para acertar seus débitos e logo fiquei sem muita coisa a fazer.

Mesmo com meu pequeno comércio funcionando, procurei um pedaço de terras para “pôr roça”, porque meu pai era um exímio lavrador e me ensinou todos os segredos para que uma terra produzisse dentro de seus limites. As fazendas de meu pai eram sempre invejadas pela saúde de seus animais e pela quantidade que deles havia.

Fui instalar-me no Lago da Veada, no município de Paulo Ramos, no Maranhão. Era novembro de 1975, mês em que já as terras preparadas recebem as sementes, visto as proximidades das chuvas. Logo no primeiro ano, a produção de arroz foi estupenda: 5 mil sacas. Qualquer um não precisa ser inteligente para deduzir que uma produção destas exige muita mão-de-obra. Era comum eu levar, para as terras, levas de 50 ou 100 trabalhadores, normalmente peões sem grandes perspectivas de vida, gente que trabalhava de segunda a sexta-feira para, no sábado e no domingo, gastar tudo o que conseguia com cachaça e mulher. Com isso, quando vinham acertar as contas, eles já estavam me devendo, porque compravam seus mantimentos na cantina que eu construíra na sede.

Não precisou mais que isso para o boato surgir de que eu mantinha um trabalho escravo, obrigando os peões a trabalharem de graça para mim. No entanto, ninguém tomava dinheiro adiantado ou levava mercadoria sem assinar o recibo e todos sabiam do salário que estavam ganhando. A culpa não era minha se não tinham limites em seus gastos. Sem dúvidas, eu não permitia que saíssem de lá me devendo.

No entanto muitos trabalharam comigo, tiveram saldo e saíram quando bem quiseram, sem quaisquer problemas desses que me acusam. Os que conseguiram fugir denunciaram-me à Polícia Federal, que logo me enquadrou na “escravidão branca”. Passaram a me vigiar e perseguir, mesmo porque meu passado não permitia qualquer justificativa que pudesse ser acatada. Minha folha corrida era o testemunho maior de que todas minhas afirmativas eram mentirosas.

As coisas se tornaram piores quando, ao invés de eu ficar sossegado com meu novo negócio, que estava sendo rentável, resolvi aceitar o convite do senhor Eliseu Batista, um fazendeiro cujas terras distavam das minhas uns 30 quilômetros, para fazer uma derrubada para ele de 300 hectares.

Acertados os detalhes e tendo recebido logo uma parte, arrebanhei mais 180 peões e parti para o serviço. Construí também lá uma cantina para fornecer os mantimentos e, como no Lago da Veada, também ali alguns trabalhadores, depois de se excederem em adiantamentos e cachaça, começaram a fugir. Novamente eu ia atrás, pegava-os e os trazia para trabalhar até quitarem a dívida.

Acertadas as contas eles retornavam, espalhando a fama de que eu estava, mais que antes, escravizando as pessoas nas terras que comandava. Com isso, mais um ditado era criado, com os caboclos aconselhando aqueles que tencionavam trabalhar comigo. Virou dito popular: “Deus me livre de três coisas: do caminho do inferno, da praga do mau vizinho e da pinhola do Zé Bonfim”. Para quem não conhece, pinhola, aqui em nossa região, é um relho de couro com cinco argolas de metal com que se instiga animais amuados. Outros, modificavam o dito, mas não arrefeciam as conseqüências: “Deus me livre do caminho do inferno, do mau vinho e da mão de pilão de ferro do Zé Bonfim.”

Essas prerrogativas que me imputavam à revelia da verdade, mais as que já vinham das primeiras encrencas de minha vida, tornavam-me, a cada dia, um homem desalmado e cruel. Jamais surrei alguém com pinhola, nem usei minhas mãos pesadas contra alguém indefeso ou fraco. Tinha as mãos fortes e pesadas sim, por que Deus mas deu assim, mas, com a exceção de algumas vezes em que estava bêbado, jamais as usei a não ser para instigar montaria ou para ganhar o pão.

Trabalhando em fazendas, mexendo com gado, sem dúvida alguma eu não apeava da pinhola e, por causa da fama que me criaram inimigos e ameaças, também sempre que podia andava armado, principalmente quando sabia que o perigo rondava.

No Lago da Veada eu passava a maior parte do tempo jogando sinuca ou cartas. Nesse tempo eu bebia muito e arranjei algumas brigas. Cheguei mesmo a disparar três vezes contra pessoas que me aporrinhavam, mas, por sorte, nenhuma delas veio a falecer. Lamento apenas entender, somente agora, que não eram as pessoas que me apoquentavam, porque todos me respeitavam ou tinham medo: era mesmo a cachaça que parecia exigir que eu desse, quando em vez, demonstrações estúpidas de que ainda era eu quem mandava por ali.

A verdade é que, a cada dia que passava, eu ia me isolando e sentindo a dura solidão de viver num mundo cheio de gente, sem ter ninguém para conversar. Muitas vezes eu entrava num bar e logo notava que as pessoas, uma a uma, iam se levantando, pagando a conta e saindo. Ainda que pra muitos isso pudesse significar uma honra, no fundo mesmo me doía como um estilete sangrando o coração.

A ideia que tinham de mim era a mesma que tem um pessoa que ouve o som de um televisor, mas não vê a imagem. Quando isso acontece, normalmente a gente sempre cria, na mente, uma imagem diferente daquela que está passando.

Muitas vezes consegui conversar com pessoas que me temiam e que em pouco tempo se sentiam a vontade, por perceberem que “o diabo não era tão feio como pintavam”. Muitos chegaram até confessar: “Sr. José, só mesmo conversando com o senhor a gente fica sabendo que o senhor não é o que andam falando”.

Ainda que eu soubesse que não era nenhum santo, aquelas palavras me confortavam... e muito.

CAPÍTULO 17

Um sequestro inesperado

18 de janeiro de 1977. Eu havia feito um empréstimo agrícola no Banco do Brasil de Bacabal e na manhã daquele dia estava ali para receber a segunda parcela, referente à limpeza das roças. Cheguei minutos antes de o Banco abrir suas portas e, estranhamente, notei a presença de muitos policiais e também de curiosos, que imaginei clientes agoniados como eu.

Inocentemente, não atentei para a situação, imaginando que a presença de mais de 60 policiais se devia a alguma suspeita de assalto ou mesmo para recebimento de vencimentos. Logo que as portas se abriram, subi até o segundo andar e fui falar com o gerente. Este me atendeu de forma estranha. Estava nervoso e me pediu para aguardar um instante porque o rapaz da carteira agrícola ainda não havia chegado.

Afastei-me um pouco e fiquei ali em pé, aguardando o tal rapaz. E o tempo foi passando, passando, até que, ao ultrapassar duas horas de espera, voltei ao moço que me solicitara aguardar um instante e reclamei:

– Moço, estou há duas horas aguardando para receber a segunda parcela, como reza o contrato, e o senhor ainda não me atendeu. Poderia me dizer a razão?

Ainda muito nervoso, ele disse que, naquele momento, o problema era a remessa do dinheiro que ainda não havia chegado à agência, mas que não devia demorar muito.

Na verdade, a demora se devia ao atraso de um oficial da polícia militar destacado em Pedreiras e do capitão Severo, que viriam para me prender.

Dentro do banco, mais de 10 policiais à paisana já estavam na sala, fingindo ser pacientes clientes, enquanto que, lá fora, um verdadeiro contingente armado parecia preparado “para tomar a Bastilha”. E eu ali, desarmado, sem nem desconfiar de toda aquela manobra. Como eu precisasse do dinheiro, continuei ali esperando até que, ao meio-dia, a verdade veio à tona. Dois desconhecidos se acercaram de mim e me perguntaram se eu era José Bonfim. Então respondi:

– Com certeza, nem mais feio nem mais bonito. Sou eu mesmo.

– Pois considere-se preso. Somos da polícia e temos ordens de levá-lo.

– Posso saber do que estou sendo acusado?

– Logo ficará sabendo – disseram, enquanto me tomavam pelo braço, revistavam-me e me encaminhavam para a escada.

Nessa hora, eu já estava cercado por um verdadeiro batalhão de meganhas de olhares felizes por haverem aprisionado “o mais terrível dos bandidos do Maranhão”, um homem totalmente sozinho e desarmado.

Cheguei a imaginar ser a Polícia Federal que ali estava por causa das denúncias de “escravidão branca”. Fiquei calmo porque se fosse isso, eu tinha como me defender. Levava comigo documentos e tinha testemunhas a meu favor. Mas não era.

Pedi que passassem em minha casa para que eu apanhasse alguma roupa, mas, temendo minha família, eles trataram de sair logo da cidade, antes que a notícia se espalhasse.

Tomaram o rumo da cidade de São Luís, mas, quando chegaram em Caxuxa, surpreenderam-me com a mudança de direção, pegando a estrada para Teresina. Senti maus presságios, porque eles deviam ter parado na delegacia de Bacabal para comunicar minha prisão, já que estava sendo levado para outra jurisdição. Imaginei um seqüestro com a finalidade de me matar, mas mesmo assim mantive a calma que pude, mesmo porque não havia como eu tentar qualquer coisa para me livrar daquele verdadeiro exército armado.

Quando chegamos a Livramento, havia lá uma companhia da PM comandada pelo major Brasil. O capitão Severo, comandante da escolta que me levava, apresentou-me a ele. Como todo bom covarde que se vê em vantagem, também Brasil não deixou por menos:

– Este bandido tem que ser levado algemado.

Então, o major Severo retrucou à altura:

– Esta missão é minha e posso levá-lo sem algemas.

Havia nas feições dos que me levavam uma euforia própria de quem realizou um feito heróico.

Houve um curto silêncio e Severo acelerou a viatura, seguindo caminho. Quando imaginei que iriam para São Luís, eles tomaram novamente o rumo de Teresina. Em Peritoró, deixaram a estrada para Teresina e seguiram para Dom Pedro. Nessa hora não tive mais qualquer dúvida de que seria executado em alguma vicinal.

Mais uma vez o leitor achará graça se eu disser que pedi a proteção de Deus, pois não deve haver morte mais terrível do que aquela em que a pessoa é executada friamente sem a mínima chance de se defender.

Quando chegaram num lugarejo com o nome de Independência eles rumaram para Pedreiras, no Maranhão. Lá chegando atiraram-me numa cela da delegacia e foram embora sem mais qualquer explicação. Eram 18 horas do dia 18 de janeiro de 1977.

CAPÍTULO 18

Em Pedreiras

Para aumentar minha fome, no dia anterior eu nem sequer havia tomado café. E ainda continuava do mesmo jeito de quando me prenderam lá no Banco de Bacabal. Ninguém me oferecia sequer um pedaço de pão. O tratamento que muitas delegacias prestam aos prisioneiros é qualquer coisa de revoltante e desumano. Bem certo estão aqueles que afirmam que cadeia não recupera ninguém, antes aumenta a revolta e alimenta a doentia inclinação de se vingar da sociedade.

Passei a noite inteira em pé, com o corpo e a roupa imundos, sem banho, sem um copo d’água. No entanto eu sabia que não iria morrer de fome ou de sujeira e, por certo, nem de cansaço. Quando o dia amanheceu, o capitão Severo, acompanhado de sua equipe, chegou, tirou-me da cela e atirou-me para trás da velha viatura e, sem um bom-dia, começou nova viagem.

A esta altura, minha família, que me esperava desde o dia anterior para o almoço, já estava aflita, imaginando o que podia ter acontecido comigo. Dificilmente eu não dizia a eles para onde estava indo, sempre que saía. Também não demoraram em saber de minha prisão, porque em cidades pequenas não há segredos. Na delegacia de Bacabal meus familiares não receberam qualquer informação, mesmo porque a polícia local não foi notificada. Caracterizava-se uma prisão arbitrária.

O que mais preocupava meus familiares eram as constantes notícias de mortos que apareciam desovados nas cercanias das cidades sem que ninguém soubesse dos executores, normalmente policiais de uma jurisdição que, em comum acordo com as outras, “faziam essa troca de favores” para despistar os interessados em elucidar o crime.

Ainda que eu imaginasse que me levariam a São Luís, eles tomaram a direção de Lago da Pedra, ganhando a BR que dava acesso à cidade de Santa Inês. Ali, em Lago da Pedra, eles pararam e até me ofereceram um lanche, mas a angústia que estava vivendo mais uma vez me alimentava a contento. Enquanto tudo aquilo não tivesse um desfecho que me assegurasse de que eu não seria executado, com certeza a fome eu suportaria. Fiquei calado, pois já havia sido repreendido por Severo: quando chegasse a hora, eu saberia para onde estavam me levando.

Em Santa Inês fizeram outro lanche e novamente me convidaram, mas limitei-me a um nuto negativo da cabeça. Com um sorriso sarcástico, um soldado observou:

– Coma, homem! Há maneiras mais rápidas e melhores de morrer, do que de fome.

Aquilo me deu um arrepio na espinha, pois ainda não havia apagado da mente a idéia de que iriam me executar em algum lugar ermo da estrada. O carro era velho e malconservado, mas mesmo assim andava muito devagar para meu gosto. Quando passaram por Buriticupu, acalmei-me um pouco quanto à possível execução porque percebi que estavam me levando para Imperatriz, possivelmente para me julgarem pelo massacre do Pindaré, do qual eu era acusado de principal mentor.

Mais ou menos na entrada da fazenda Irmãos Vale, em Novo Bacabal, eles diminuíram a velocidade enfiando o carro numa antiga estrada de madeireiro. Entreolharam-se e desceram, dizendo que iam urinar. Desceram armados e me convidaram para descer também, pois devia estar com a bexiga cheia.

Na verdade eu estava. Doía em cada solavanco do carro. Pedia a Deus que parassem em uma delegacia, em algum lugar em que eu pudesse acreditar que não seria executado. Mesmo assim disse que não e fiquei com o coração pulsando, como se fosse sair do peito. Estava certo de que, se eu descesse, eles me matariam, e alegariam, como álibi, que eu tentara fugir.

Eles fizeram alguns alongamentos, bocejaram de cansaço e sono e voltaram a seus lugares. Quando reiniciamos viagem, tentei uma oração, de olhos baixos, porque Deus, certamente, não teria tempo nem paciência para uma escória humana como eu.

Quando passamos por Açailândia, já eram 6 horas. Ali eles demoraram bastante, curtindo o heroísmo que os curiosos lhes dispensavam por haverem prendido o mais temido, violento e cruel pistoleiro do Maranhão.

Ali acuado e vencido, lembrei do dia em que um fazendeiro apanhou numa arataca, uma enorme canguçu. O povo acorria curioso, fustigando o animal acuado como se dele fosse a culpa de haver nascido onça. Eu me vi no lugar daquele felino, pagando, também, pela índole com que nasci sem qualquer opção de minha parte.

Tanto o valente quanto o medroso, tanto o assassino quanto o santo, tanto o preto quanto o branco, tanto o normal como o deficiente... todo ser humano que existiu e existe no mundo com certeza não é tão culpado por suas fraquezas, feiúra ou índole quanto as que a sociedade lhes atribui.

Estaremos sempre distantes da justiça e do merecimento enquanto a ciência estiver se debatendo para entender a genética. Antes que isso aconteça, iremos vivendo do que a moral e os costumes decidiram através dos séculos, perseguindo ou recriminando aqueles que burlam as regras da tradição.

Chegamos em Imperatriz no dia 20 de janeiro às 10 horas. Com certeza, entre eles já havia sido tudo combinado, tanto que foram logo me tirando do carro e me empurrando para dentro de uma cela onde havia mais quatro detentos. Entre eles, o Natal, um dos empreiteiros que eu havia levado para trabalhar na Fazenda Cipó Cortado.

Foi Natal que me contou que ele e o Cícero já haviam sido julgados e apenados com oito anos de reclusão. Disse-me que Cícero cumpria a pena em São Luís já há dois anos e que, pelas benesses da lei aos bem comportados, somados a “outros descontos” legais, ele já estava prestes a ser posto em liberdade.

Ainda conversávamos quando meus parentes e amigos começaram a chegar. Meu pai foi o primeiro e já trazia consigo o Dr. João Jacob, advogado que sempre esteve do meu lado nas horas mais cruciais de minha vida. Meu cunhado José Chicó, além de palavras de conforto, trouxe-me roupa limpa e dinheiro para as necessidades elementares.

Horas depois eu já comia como se estivesse chegando de um deserto onde estivera perdido durante semanas. Toda fome retida pela tensão, agora chegava insaciável. Ainda que não duvidasse de minha condenação, estava certo que também esta fase difícil de minha vida iria passar.

Sei que se jurar que, comprovadamente, nunca matei ninguém, será tão mentiroso como se tornarão verdade os boatos de que eliminei covardemente centenas de pessoas. Já não me importo, mesmo porque a justiça humana já me condenou, e a divina, com certeza, também já decidiu sobre minha culpa em tudo o de que me acusam.

O único e cristalino argumento que ainda ouso usar contra todos que me condenam é o de que provem que matei alguém. Mais clara que a luz do dia é a verdade de que uma família que sabe quem assassinou seu ente querido procura justiça, proclama o assassino e, às vezes, busca vingança. Os que me acusam, que tragam um desses para provar que fiz isso.

Mas, como disse, não importa mais senão o perdão de Deus por outras tantas fraquezas que cometi. E que Ele, em sua eterna bondade, desconte de minha dívida as calúnias, as difamações e a índole agressiva e inquieta com que nasci.

CAPÍTULO 19

Fim do pesadelo

Permaneci na cadeia de Imperatriz durante dois meses e dois dias. Vencida a batalha judicial, o Dr. João Jacob me chegou com o alvará de soltura, documento conseguido ante a falta de provas daquilo que me acusavam.

Novamente livre, voltei para o Lago da Veada, continuando com meu trabalho de comerciante e lavrador. Mal me recuperara da esfrega com a polícia militar, já me chegavam notícias de que a Polícia Federal estava em meu encalço. Incontinenti, fui a Bacabal e liguei para o Dr. João Jacob, que, mais uma vez, foi prestativo, dizendo que iria se informar se o boato tinha fundamento.

Horas depois já me telefonava dizendo que não encontrara nada a respeito e que tudo estava calmo e tranqüilo. O que eu não mais me lembrava – nem o Dr. Jacob – eram das denúncias de “escravidão branca” de que houvera sido acusado, no tempo em que os peões tentavam fugir deixando-me no prejuízo.

Isso me veio à lembrança quando fiquei sabendo que os policiais federais estavam em Brejo Grande, mais ou menos a uns 40 quilômetros do Lago da Veada. Ante o perigo, escondi-me na mata e dei ordens a um de meus funcionários de confiança para que fosse a Brejo Grande e constatasse a veracidade ou não do que eu tinha ouvido falar. Dei ordem, também, para que ele não saísse de lá enquanto a Polícia Federal não o fizesse e que, em caso de os policiais virem para o Lago da Veada, que ele se adiantasse a fim de me avisar.

Por sorte, ainda que não se ficasse sabendo qual o motivo que levou os policiais até lá, depois de alguns dias eles retornaram. Em mim, porém, o receio continuava. Qualquer pessoa que eu avistasse ao longe já me sugeria perigo. Foram dias terríveis de tensão e medo. Não conseguia mais trabalhar e, se tentasse, sempre me machucava, porque meus pensamentos estavam sempre ligados ao pior. Todas as noites eu ia dormir em algum lugar retirado da sede, a fim de evitar um flagrante inesperado.

Depois de algumas semanas vivendo assim, comecei a me sentir mal. Uma espécie de depressão começou a me tirar a vontade de trabalhar e até mesmo de viver. Antes que o mal se acentuasse, resolvi ir a Bacabal e me aconselhar com meu cunhado José Chicó. Depois de ouvir-me ele foi franco e direto:

– Sem dúvida, você tem que resolver de vez esses seus problemas. Viver com medo, fugindo de Deus e do mundo, não é vida pra ninguém. Aconselho a enfrentar o problema de frente e pôr um ponto final nessa angústia.

– Mas, como? – perguntei atônito.

– Se eu estivesse em seu lugar, iria a São Luís e falaria direto com o deputado João Alberto (hoje senador). Ele é o único que poderá pôr um ponto final nisso tudo, mandando prendê-lo de vez ou dando ordens para que lhe deixem em paz.

– Mas como irei conversar com um homem assim, que deve conhecer apenas minha fama e talvez até reze todos os dias para eu não cruzar-lhe o caminho?

– Não esqueça: ele é político e muito meu amigo. Irei com você como carta de apresentação e, com certeza, ele o atenderá.

Meio desconfiado, aceitei o convite e viajamos para São Luís no outro dia pela manhã. A data certa não lembro, mas sei que o Natal de 1977 se aproximava, porque as músicas natalinas eram ouvidas em cada rádio que se ligasse. Saímos muito cedo e quando o dia amanheceu já estávamos na porta da casa do deputado, aguardando que levantasse.

Logo ele apareceu e autorizou-nos a entrar. Reconhecendo Chicó, gentilmente perguntou em que lhe podia ser útil. Ao ouvir aquilo quase que meu coração saiu do peito de alegria, pois concluí que ele estava propenso a resolver os meus problemas.

Chicó então lhe disse:

– Este rapaz está com um problema na Polícia Federal e anda aflito procurando uma maneira de acabar com o problema.

Esfregando a mão na testa para afastar um gota d’água que escapara da toalha ao enxugar-se, calmamente ele inquiriu, virando-se para mim:

– E como você se chama?

– José Bonfim – respondi, quase gaguejando, porque nunca tivera desenvoltura para falar com gente importante. Minha condição de homem rude e sem estudos inibia-me sobremaneira.

Ao ouvir o meu nome, o deputado arregalou os olhos, mudou o comportamento e o tom da voz:

– Segundo me consta, seu Bonfim, só há dois caminhos para você: entregar-se à polícia ou enfiar-se debaixo da terra.

Senti que até a última hemácia de sangue me subira ao rosto. Ainda que a fama houvesse me transformado num homem duro e valente, ali, naquela situação embaraçosa, eu passei a me sentir a mais tímida das crianças. Calado, emudecido, vulnerável, cheio de medo, baixei a cabeça. Então ele arrefeceu:

– Olha, tenho um advogado muito bom. Se o senhor quiser, posso chamá-lo para ver as possibilidades de resolver seu problema.

Ainda que momentaneamente, uma nesga de esperança voltou a mim. Então concordei. Ele foi até ao escritório, telefonou e em menos de um hora o advogado chegou. Se não me engano, ele era conhecido como Dr. Bastos. Ali presente, fui direto ao assunto:

– Dr. Bastos, quanto o senhor me cobrará para apresentar-me ao delegado da Polícia Federal?

– Não poderei fazer isso sem antes saber em que pé está o processo contra você. Para que eu faça isso, você me pagará cinco milhões de cruzeiros. O restante a gente combinará a seguir.

Apesar de não ter estudos, não precisei mais que aquela proposta indecorosa para saber que estava diante de um ladrão. Certo disso e também de minha situação complicada, engoli a raiva e pedi-lhe tempo para pensar e conseguir o dinheiro. Apesar de se achar esperto, Bastos – ao qual me dou o direito de suprimir a sigla Dr. – talvez tenha acreditado que eu seria idiota bastante para presentear-lhe os calos de minhas mãos.

Voltei com Chicó para Bacabal, agradeci-lhe e, à noite, procurei um terreiro de macumba onde, com duzentos mil cruzeiros, comprei uma porção de cordões cheios de nós e uns santos protetores acompanhados de uma folha de papel onde se lia:

“Num cantinho de um terreiro, sentado num banquinho, pitando o seu cachimbo, um preto-velho chorava. De “seus olhos” molhados, estranhas lágrimas desciam-lhe pelas faces e não sei porquê, contei-as ... Foram sete.

Na incontida vontade de saber aproximei-me e o interroguei.

- Fala, meu preto-velho, diz ao teu filho por que externas assim uma tão visível dor? E ele, suavemente respondeu: - Estás vendo esta multidão que entra e sai? As lágrimas contadas estão

distribuídas a cada uma delas. - A primeira, eu dei a estes indiferentes que aqui vêm em busca de distração, para saírem ironizando aquilo que suas mentes ofuscadas não podem conceber... - A segunda a esses eternos duvidosos que acreditam, desacreditando, na expectativa de um milagre que os façam alcançar aquilo que seus próprios merecimentos negam. - A terceira distribuí aos maus, aqueles que somente procuram a UMBANDA, em busca de vingança, desejando sempre prejudicar a um seu semelhante. - A quarta, aos frios e calculistas que sabem que existe uma, força espiritual e procuram beneficiar-se dela de qualquer forma e não conhecem a palavra gratidão.

- A quinta, chega suave, tem o riso, o elogio da flor dos lábios mas se olharem bem o seu semblante, verão escrito: Creio na UMBANDA, nos teus pretos-velhos, nos caboclos e no teu Zâmbi, mas somente se vencerem o meu caso, ou me curarem disso ou daquilo. - A sexta, eu dei aos fúteis que vão de Centro em Centro, não acreditando em nada, buscam aconchegos e conchavos e seus olhos revelam um interesse diferente. - A sétima, filho, notas como foi grande e como deslizou pesada? Foi a última lágrima, aquela que vive nos “Olhos” de todos os Orixás. Fiz doação dessas aos Médiuns vaidosos(as), que só aparecem no Centro em dia de festa e faltam às doutrinas, esquecem, que existem tantos irmãos precisando de caridade e tantas criancinhas precisando de amparo material e espiritual. Assim, filho meu, foi para esses todos, que vistes cair, uma a uma.

Com os penduricalhos e a “oração” me senti mais seguro do que estando nas mãos do salafrário do Bastos. Pela manhã, voltei para Lago da Veada.

Que Deus me perdoe, mas na situação em que me encontrava, se o diabo aparecesse prometendo-me paz, talvez eu aceitasse. A idéia de que a Polícia Federal um dia me pegaria de surpresa não me saía da cabeça. Cheguei a pensar mesmo que o deputado fora sincero quando me ofereceu aquelas duas duras opções.

CAPÍTULO 20

O encontro com a Polícia Federal

Naquele dia de janeiro de 1978 chovia muito. Para passar o tempo, eu estava jogando sinuca com um companheiro quando percebi que uma pessoa estranha apeava de sua montaria e adentrava no salão. Como minha vida era uma constante incerteza acerca do minuto seguinte, comecei a pensar que se tratasse de um policial. A suspeita aumentou quando logo chegou outro, depois três e depois mais três.

Eu estava com meu revólver Colt Cavalinho amarrado na perna e comecei a ficar totalmente desconcertado por me encontrar daquele jeito, caso fossem policiais. Pior ficou quando confirmaram, dizendo que eram da Polícia Federal. Tentando amenizar o constrangimento, pedi a eles que me permitissem retirar e guardar a arma, porque naquele fim de mundo o seu uso era quase uma necessidade.

Dois deles disseram que não havia necessidade e me chamaram para uma conversa particular no fundo do quintal. A verdade é que todo mundo, inclusive a polícia, tinha grande receio de procurar-me naqueles rincões, porque o povo espalhava sempre notícias sensacionalistas, dizendo inclusive que ali me recolhera com mais de 100 jagunços, todos prontos para o que desse e viesse.

Por sorte, quando os policiais federais chegaram, eu estava apenas com um amigo, jogando sinuca. A sede estava calma, com apenas galinhas cacarejando no quintal e porcos grunhindo ao redor da casa.

Dando vazão à minha insegurança, perguntei logo a eles se estavam ali para me prender, ao que me acalmaram dizendo que não, que apenas esperavam contar com minha hospitalidade e com a ajuda para combaterem o plantio e o comércio de maconha que havia na região.

Aquelas palavras foram como um balde de água fria no calor que insistia em vadiar pelo meu rosto. Disse a eles que se o problema fosse só aquele, eles tinham encontrado o lugar certo, pois havia muitas acomodações e comida pra mais de ano. Não bastasse, afirmei que também conhecia todas as plantações de maconha e que mandaria empregados meus levá-los em cada uma delas.

Passamos o dia ali conversando e traçando planos para o dia seguinte. Mandei arrumar montarias, separei meus funcionários que conheciam todas as roças e no dia seguinte eles partiram. À tarde voltaram satisfeitos, com boa parte da missão cumprida: muita maconha e alguns plantadores presos.

Durante oito dias estiveram em minha fazenda. Andaram por toda a região e notificaram as pessoas que estavam plantando a erva. Não levaram ninguém preso, só os alertaram que o faria se algum deles reincidisse. Deixaram-me como “fiscal” e foram embora, solicitando-me que na primeira oportunidade fosse a São Luís e falasse pessoalmente com o Delegado Federal. Ainda que a proposta me soasse como possível armadilha, prometi que o faria nos fins de fevereiro, já que janeiro era o mês em que era preciso fazer a capina das roças de milho e arroz.

No dia 20 desse mês, quando já me preparava para viajar para São Luís, novo susto com a chegada da Polícia Federal. Por azar, pelo destino ou coisa que o valha, eu estava mesmo me preparando para fugir, quando eles despontaram na curva. Minha montaria já estava selada.

É que, horas antes, dois fregueses e, por sinal primos entre si (João Cândido e Antônio Cândido), estavam jogando sinuca, totalmente bêbados. Como se fosse uma réplica da história contada no início desta obra, os dois começaram a discutir por coisas que somente a cachaça torna importante.

Mesmo com toda minha fama, com meus revólveres expostos, sendo o proprietário da fazenda e patrão deles, não consegui que me respeitassem e parassem de brigar. Um deles puxou uma faca e partiu para cima de mim. Saltei para o outro lado da mesa de sinuca, apanhei um taco e comecei a defender-me como podia. De nada adiantou. De repente tropecei numa cadeira e ele quase me furou. Dali já levantei com o revólver na mão e dei dois disparos nos pés dele, certo de que nem a cachaça o tornaria insensato ao ponto de não perceber o perigo que estava correndo. Enganei-me.

Os tiros o enfureceram ainda mais. Fazendo malabarismos com a faca na mão, partiu célere em minha direção. Aí não hesitei mais, atirando com toda precisão que era possível, tentando eliminá-lo. Só no quarto tiro ele caiu, inclusive sujando-me de sangue.

Apanhei então uma garrafa de cachaça, lavei o sangue e, quando já me preparava para dar ordens para enterrá-lo, olhei para o local em que caíra e só vi seu vulto cambaleante, correndo para o mato. Então mandei procurá-lo e levá-lo para o hospital de Lago da Pedra, na certeza de que morreria no caminho. Os quatro tiros o acertaram em lugares, aparentemente mortais: um no pescoço, dois no rosto e um no peito.

E eu estava ali, exatamente contando com sua morte e me preparando para fugir, quando os policias chegaram. Ainda com a mão nas rédeas, disse:

– Podem me prender, porque eu estava me preparando para fugir. Acabo de atirar num homem e acho que ele irá morrer.

– Esse tipo de crime não é de nossa alçada, pode ficar calmo. Viemos para dar continuidade ao combate ao plantio de maconha.

Novamente acreditei ou fui obrigado a acreditar, mesmo porque não tinha outra alternativa. Os policiais se apresentaram e, nesse dia, fiquei conhecendo o delegado Bonfim, nesse tempo, ainda agente. Foi ele quem observou:

– Meu nome é José Ribamar Melo Bonfim; seríamos parentes?

– É possível – respondi. Do seu nome, apenas “Melo” não faz parte do meu. É bem possível que tenhamos laços de sangue.

No outro dia eu mesmo os acompanhei e muitas roças de maconha foram queimadas e um bom número de traficantes, presos. No terceiro dia eles retornaram.

Minha fama, que já era grande como perseguido pelas polícias Militar e Civil, agora extrapolava: segundo as novas notícias que logo se espalharam, eu passara a ter a proteção da Polícia Federal e poderia promover badernas e matar quem eu quisesse.

Só em março pude viajar para São Luís, mesmo porque haviam me dito que um homem de nome José Lócio dos Santos estava interessado em adquirir terras no Lago da Veada.

Eu tinha lá duas áreas contíguas, uma de 600 hectares e outra de 800. Disse-lhe que vendia ambas com “porteiras fechadas”, ou seja, sem tirar dela uma enxada que fosse. Eu já tinha bastante gado e muitas outras criações.

Em abril de 1978, José Lócio foi ver a área e fechamos o negócio, ficando ele com o compromisso de me pagar 20% à vista e o restante dividido em quatro prestações de igual valor, vencíveis de 90 em 90 dias, com a primeira vencendo em julho de 1978. Combinamos também que só lhe daria posse das fazendas em setembro de 1979, tempo em que já devia ter colhido minhas plantações, assim como recebido aquelas que havia comprado de outros agricultores.

Se há uma coisa que nunca fui nesta vida, bom comerciante é uma delas. Nunca fui afeito a contas, muito menos às regras econômicas que devem ser observadas num país instável como o nosso. Eu não tinha idéia nem sabia dos efeitos que a inflação galopante exercia nas compras e vendas a longo prazo e não me preveni com qualquer cláusula que aliviasse a desvalorização do dinheiro. Com isso, já na primeira prestação, o que recebi não dava nem para comprar o gado que eu tinha na fazenda.

Não bastasse, José Lócio era um péssimo pagador, tanto que para receber o pouco que me restou, ainda tive que fazê-lo apanhando carros e objetos de que não precisava. Pensei mesmo em desfazer o negócio, mas ainda que me imputem tantos pecados, o de faltar com a palavra, com certeza, não carrego. Praticamente dei minhas fazendas para ele.

Aproveitando minha ida a São Luís, ainda que temeroso, fui à Polícia Federal. Procurei o delegado, identifiquei-me e pedi a ele que me dissesse se havia alguma coisa que me incriminava. Muito atencioso ele me respondeu que não e que aproveitava minha presença para agradecer a grande ajuda que eu dera a seus comandados nas buscas da maconha da região em que eu vivia.

A bem da verdade, a Polícia Federal continuou fiscalizando a região até agosto de 1979, hospedando-se sempre na sede de minha fazenda.

Quanto ao homem baleado, ainda que contra todo e qualquer princípio da ciência, sobreviveu, evitando, assim, que constasse como única prova concreta de assassinato cometido por mim.

Ele sim, embora sobrevivesse, pesa-me na consciência, porque atirei para matar, ainda que a lei pudesse me conceder a atenuante de legítima defesa.

CAPÍTULO 21

Agora, com um padre no meio

No dia 20 de setembro de 1979 entreguei, muito a contragosto, as fazendas para o Dr. José Lócio e me mudei para Bacabal. Ainda que fosse pouco em relação ao preço que valiam minhas fazendas, o dinheiro foi bastante para fazer de mim um homem inconveniente em qualquer ambiente social. Bebia, criava problemas e angariava amigos da pior espécie, tornando-me um homem perigoso, só procurado para as mais perversas causas.

Foi nesse tempo que, ainda mais, fui usado por “homens de bem”, homens covardes, com o coração cheio de hipocrisia e que viviam me utilizando para cobrir seus pêlos de lobo. Como já me sentisse muito à vontade, livre das amarras judiciais, com a polícia não mais se envolvendo, ao invés de melhorar, tornei-me pior. Ainda que não carregasse comigo o estigma de assassino, cometia muitas outras arbitrariedades que sei também são crimes.

E foi assim que mais uma vez fui contratado para resolver um sério problema em Paulo Ramos, onde um padre arrebanhava posseiros para cortar as cercas de arame e invadir propriedades alheias. Pelo menos era o que os pretensos donos me garantiam. Como sempre fui mais agricultor que invasor e como conhecia bem essas investidas políticas de cunho filantrópico, aceitei a missão.

Comigo, a certeza de que seria fácil, porque se tratava de “homens santos”, conhecedores das leis terrenas e, principalmente, das divinas. Sempre me ensinaram que padres eram homens bons, mansos e que pregavam a justiça, mas nunca por meio da violência. Por isso, fui para lá sem grandes precauções.

Minha primeira ação foi atear fogo num barracão em que o padre celebrava missa, não sem antes adverti-lo de que, se mandasse cortar mais um fio de arame, eu faria o mesmo com ele.

Confiando em seu santo carisma, o padre não se intimidou e começou a discutir comigo. Na verdade, eu seria incapaz de qualquer ato espúrio contra alguém que se diz ungido de Deus. Por isso mesmo fui curto e grosso, dizendo a ele que o recado estava dado e que esperava não ser necessário ter que cumprir minha promessa.

Com o padre havia uma advogada que, fazendo jus ao diploma que recebera, falava mais que vitrola enganchada, ameaçando-me com artigos e incisos, sem saber o real valor que eu dava àquela lengalenga. Virei-lhe as costas e me afastei do lugar, porque o calor que vinha das chamas, que se elevavam daquele velho barracão, já estava se tornando insuportável.

Como me demorasse a voltar, quando cheguei em Paulo Ramos, parecia desfile de 7 de Setembro, tal a quantidade de meganhas que me aguardava. Por mais incrível ou inverossímil que pareça, passei no meio deles e ninguém me reconheceu. É bem verdade que a maioria deles não me conhecia mesmo, mas o fato é que segui meu destino sem que ninguém me incomodasse. Confesso que quando essas coisas aconteciam, eu me lembrava dos cordões amarrados que carregava comigo, garantias do macumbeiro que havia rezado meu corpo. Hoje sei que realmente tem sentido o provérbio chinês que diz que “pra quem acredita, cabeça de peixe faz milagres”.

Pois bem, dias depois voltei para ver se os padres tinham acreditado em minha ameaça. Imagine minha frustração quando vi lá, mais de 70 deles numa grande manifestação apoiada por posseiros, dizendo que eu teria de ser preso e pagar pelo prejuízo de haver queimado a igreja.

Adiantando-me ao problema, procurei o sargento Amojaci e fui objetivo, categórico, imprudente e ofensivo:

– Diga a este monte de homens de saia que estou disposto a pagar a “latada”, desde que eles também me paguem os arames que cortaram e as cercas que mandaram arrancar.

Deixei minha proposta e, novamente, virei-lhes as costas. A quilômetros ainda eu ouvia o murmúrio e os cânticos revolucionários, tipo “o povo unido jamais será vencido” e coisas semelhantes. Acostumado com questões muito piores, segui meu caminho, na certeza de haver cumprido mais um triste mandado.

Depois de algumas semanas, por acaso encontrei-me com o sargento Amojaci e ele me disse que os padres haviam desistido e esquecido o incidente. Melhor para ambas as partes, porque, como já se disse, “só quem mata padre é Deus”.

CAPÍTULO 22

Novamente na Terra do Frei

Em fevereiro de 1980, mudei-me mais uma vez para a cidade de Imperatriz. Apesar dos desmandos políticos, Imperatriz era uma cidade promissora que crescia a olhos vistos. Infelizmente, a maioria dos homens tidos como importantes, políticos e grandes empresários, era formada de homens hipócritas e perversos, com a agravante de serem covardes.

Meus primeiros meses aqui foram horríveis. As pessoas de bem nem passavam na rua em que eu morava. Não consegui fazer qualquer negócio que pudesse me render algum dinheiro para manter minha família.

No entanto, os homens que ainda hoje são respeitados, mas que na verdade representam a pior espécie humana, logo que souberam de minha chegada, começaram a me procurar para eliminar desafetos, traficar drogas, conseguir carros roubados ou, quando nada, buscando informação sobre algum pistoleiro eficiente para “fazer o serviço” que pretendiam. Essas pessoas eram tão “recatadas e precavidas” que nem a coragem de estacionar o carro perto de minha residência tinham. Escolhiam uma rua discreta, deixavam o carro e vinham a pé, para que ninguém desconfiasse de suas ligações com o “maior pistoleiro” da região.

Outros telefonavam ou enviavam emissários para tratar dos detalhes, mas são testemunhas de que jamais aceitei um centavo para ceifar a vida de alguém sem um motivo que justificasse minha consciência. Atirei em gente e devo até ter matado alguém, mas sempre por motivo que minha concepção de justiça aprovava, como aconteceu com a vingança contra os ciganos que mataram meu irmão primogênito.

Nesse tempo senti que seria muito difícil eu sair do labirinto em que entrara. Ainda que lampejos de arrependimento pela vida confusa e sem perspectivas que levava me surgissem, logo eles eram apagados pelos constantes convites, financeiramente irrecusáveis, que me apresentavam. Nunca encontrei alguém que quisesse, de fato, meu bem. Nunca um homem de verdade, um homem que de fato acredita em Deus, achegou-se a mim para dizer da verdade de Seu Filho Jesus.

Eu não me deitava sem ter uma proposta indecente na cabeça; não acordava sem sentir a necessidade de aceitar para poder cumprir com minhas obrigações familiares básicas.

No entanto, quando a proposta era para matar alguém, eu sempre me esquivava. Por isso dói-me hoje carregar o estigma de pistoleiro, porque não o fui. Se me acusassem de andar com criminosos, de acoitá-los e de tantas vezes dar a eles guarida – isso e muitas outras coisas mais – não estariam cometendo grandes injustiças, mas a de me tachar como criminoso frio e calculista, isso sim, é grande calúnia, que deverá, um dia, clamar aos céus.

Hoje, na lei do tráfico de drogas, maiores imputações sempre caem sobre aqueles que comercializam, enquanto a sociedade luta para livrar os incautos da dependência. Assim também deveria ser no mundo do crime, porque há pessoas que matam por serem coagidas, forçadas, instigadas por hipócritas covardes, que por fora ostentam honradez e moral, mas por dentro são bem piores que “sepulcros caiados”.

O leitor deve estar frustrado porque não estou citando nomes. Nem seria preciso, porque não é a mim que cabe praticar a justiça e sim aos órgãos que, inclusive, são pagos pela população para isso.

Esses órgãos, representados pela Judiciário e pela Polícia, sabem de cor e salteado quem são os mandantes das tantas execuções sumárias que aqui aconteceram e ainda acontecem, assim como sabem daqueles que surrupiaram o erário público, mas preferem a omissão covarde às exéquias honrosas.

Para a polícia, não há crime insolúvel. Eles sabem de todos eles, mas, enquanto necessitarem do emprego e da “mão asquerosa de alguns perversos políticos”, terão que viver a humilhação da ineficiência e da incapacidade.

Vivi nesse mundo, conheço cada palmo desse caminho. Só não estou a mais tempo pagando pelos meus crimes porque muitos ainda acreditavam que eu lhes pudesse ser útil. Hoje, cansado e buscando a conversão, talvez apodreça entre quatro estreitas paredes. Mal sabem eles que, mesmo sem merecer, graças aos misteriosos desígnios de Deus, estou conseguindo a liberdade que eles lá fora ainda não conseguiram.

Eles podem ver o sol e sentir-lhe o calor nos dias de verão, mas jamais, como eu, o terão nas noites frias dentro de um cubículo sem janelas. Aqui sim, se realiza o milagre, dia a dia, minuto a minuto, como se as chispas dos raios que encegueceram Saulo no caminho para Damasco ainda vagueassem pelo Universo e chegassem até meus olhos.

CAPÍTULO 23

Pelos garimpos

Sem opção de trabalho em Imperatriz, resolvi tentar a sorte nos garimpos. Era uma experiência nova, pois jamais eu entrara num desses lugares. Como não conseguisse serviço em Imperatriz, resolvi apelar para a única opção que então se me apresentava. Todos sabem que não há no mundo uma classe de gente mais sonhadora do que a dos garimpeiros. Os imperatrizenses viviam essa febre. Não se falava em outra coisa senão em enriquecimentos-relâmpagos de gente que encontrava filões de ouro em seus barrancos.

Ganhar muito dinheiro, tanto quanto pudesse resistir minha irresponsabilidade de esbanjar com bebidas e mulheres, era algo que não me saía da cabeça. Juntei 10 companheiros e com eles fui averiguar a veracidade do que se dizia do Garimpo da Goiaba, no Rio Maria, no Pará. Fiquei decepcionado, pois o desânimo lá era geral e todos diziam que havia pouco ouro por ali.

Voltei para Redenção, considerada a cidade sede dos garimpeiros e fiquei sabendo de outro garimpo, o da Macedônia, onde era geral o murmúrio de que talvez tivesse mais ouro que em Serra Pelada. Disseram-me também que lá só se entrava com a autorização do dono e que havia uma barreira de jagunços para impedir que as ordens fossem desobedecidas. Sem dar ouvidos aos boatos ou à verdade, parti para lá, juntamente com o João Bontempo, o Manoel Fala Fina e mais sete companheiros.

Quando chegamos na primeira guarita, vimos que haviam nos contado a verdade: seis homens mal-encarados, todos de carabinas em riste, estavam a postos, juntos a uma grossa corrente com cadeados. Disse aos companheiros que me aguardassem que iria conversar com eles. O chefe se chamava Eugênio e era aleijado de uma perna. Caminhava com uma carabina na mão esquerda, mantendo a mão direita apoiada no joelho para poder compensar a deficiência da perna atrofiada. Assim ele caminhava razoavelmente, embora claudicando. Não era difícil imaginar o porquê de sua escolha para chefe da guarita.

– Trouxeram ordem do Juarez, dono do garimpo? – perguntou, cerrando as pálpebras como a deduzir minhas intenções.

– Não – respondi-lhe laconicamente. Mas se me disser onde ele está, poderei fazê-lo.

– Ele fica no Hotel Mogno, em Redenção.

– O senhor deve saber que Redenção está muito longe daqui e eu só queria ver como é o garimpo.

– Ainda que seja só para olhar, sem ordem de Juarez, e por escrito, não entra.

Já estava pronto para dizer que iria entrar de qualquer maneira quando resolvi tentar uma outra estratégia. Como quem está com calor, alcei a camisa para abanar o rosto, deixando bem visível uma pistola e um revólver de grosso calibre. A impertinência de Eugênio minguou. Agarrando-se ao parapeito da guarita, ele adentrou dizendo mais educadamente:

– Está bem, o senhor encosta o carro ali do lado e segue uns dois quilômetros a pé. Lá irá encontrar a cantina do Bateia, gerente geral do Juarez. Se ele permitir, deixaremos o senhor entrar.

– Amigo – retruquei –, estamos muito cansados. A estrada está horrível. Viemos mais trazendo o carro do que ele a nós. Por isso quero que o senhor me deixe ir até a cantina com ele. Pode deixar que voltarei imediatamente para entregar-lhe a autorização ou, em caso negativo, para ir embora.

Depois que abanei o rosto com a camisa, o entendimento com o maqueta ficou mais fácil. Ele concordou sob minha palavra de honra de que voltaria com a autorização e então passei com meus companheiros. Quando chegamos na cantina, tudo ficou mais fácil ainda, porque o Bateia era de Imperatriz e já conhecia minha fama. Apenas me pediu para respeitar algumas normas do garimpo, sem as quais eu o deixaria em situação muito difícil. Perguntei-lhe quais eram e ele explicou:

– Você terá que pagar 10% do ouro encontrado ao Dr. Juarez, comprar as mercadorias de que necessitar aqui na cantina e vender seu ouro aqui mesmo. O preço é o mesmo de qualquer lugar.

– Acho muito justo – respondi-lhe, ainda que soubesse como funcionam as cantinas dos garimpos. Se as minhas, em que apenas repassava os valores dos armazéns, já eram conhecidas como extorsivas, imaginava eu como seria aquela em que não negavam a cobrança do dobro do valor. Mas, pra muito ouro, mercadoria a preço dobrado é bobagem. Aceitei as condições, “fiz o rancho”, jantei com meus companheiros e passei a noite ali, porque já era tarde e chovia muito. Corria o mês de novembro.

No outro dia bem cedo, metemos as tralhas nas costas e partimos resolutos para desfazer os 30 quilômetros de mata fechada que nos separava da Grota Rica, nome como era conhecido o veio principal do garimpo da Macedônia. Nos primeiros 10 quilômetros nossa progressão foi satisfatória, não se podendo dizer o mesmo no restante do trajeto. De 500 em 500 metros tínhamos que dar uma descansada, porque havia companheiros que se mostravam exaustos. Com isso o dia acabou. Passamos a noite de pé, encostados em troncos espessos, nos protegendo quanto possível da chuva que parecia se deliciar com o nosso cansaço e sofrimento.

Pela manhã, apesar de todo cuidado, mochilas e roupas do corpo estavam intumescidas, fedorentas, pegajosas. Alguns embrulhos começaram a se romper e só Deus sabe como conseguimos chegar ao local com alguma coisa. Como instigados por uma estranha força, ante a euforia dos que lá garimpavam, fomos logo procurar um local para trabalhar.

Por sorte, a maior parte dos garimpeiros era de Imperatriz. Aqueles que não me conheciam pessoalmente estavam fartos de conhecer minha triste fama. Acredito que nesse tempo não havia uma só pessoa no Maranhão que já não tivesse ouvido falar de Zé Bonfim.

Trabalhei 20 dias e já retornei com meio quilo de ouro. Deixei os companheiros e voltei para providenciar muitas coisas necessárias e indispensáveis que nossa falta de prática no ramo havia deixado para trás. Passei na cantina, descontei os 10%, quitei o débito do rancho e recebi o dinheiro do restante, retornando a Imperatriz.

Quando já sonhava com um trabalho digno e sem encrencas, o Bateia logo me passou um recado, dizendo que o Juarez queria falar comigo com certa urgência.

CAPÍTULO 24

Tratores como tanques de guerra

No Hotel Mogno, depois do jantar, procurei pelo Juarez, que, conforme recado enviado ao Bateia, desejava falar comigo. O recepcionista foi chamá-lo no quarto e minutos depois ele desceu, apresentando-se. Disse que soubera de minha presença em seu garimpo e também da fama que eu tinha de resolver problemas que até a polícia enjeitava.

O que para ele era um elogio, para mim cheirava a encrenca e a mais uma tentativa de usar minha vida em benefício de seus interesses. E com certeza era isso mesmo.

– Bem perto do garimpo tenho uma fazenda que foi invadida. Já mataram dois de meus empregados. Tenho documento que me garante a reintegração da posse, mas nem a polícia está querendo cumprir o mandado. Segundo ela, o líder dos posseiros apelou e enquanto não sair a decisão final nada poderá ser feito. Como estão lá com dois grandes tratores de esteiras e como a demanda corre lentamente por Belém, temo que, quando a decisão sair, eles já terão feito tanta coisa lá dentro que dificultará a reintegração.

– Sei como é – respondi-lhe, preocupado. Na verdade, vim aqui foi mesmo para garimpar e havia tomado a decisão de não mais me envolver com problemas deste tipo, pois já carrego a fama de homem mau e perverso. Estou seguindo pra Imperatriz e, quando voltar, dar-lhe-ei uma resposta.

Com o primeiro ouro, adquiri do senhor José Aguiar uma casa modesta na Rua Alagoas, bem perto do Juçara Clube, em Imperatriz. Deixei nela minha família e já voltei com a esperança de encontrar mais ouro, comprar o terreno que havia ao lado, reformar a casa e sossegar até o fim de meus dias. Com esse bom propósito, retornei em dezembro para continuar os trabalhos do garimpo.

Como havia prometido e combinado, ao passar por Redenção, hospedei-me no Hotel Mogno e fui falar com o Juarez. Ele parecia eufórico, como se eu já tivesse lhe adiantado uma resposta positiva. Não sei porque, a euforia dele me contagiou e quase sem perceber perguntei a ele há quanto tempo os posseiros haviam invadido suas terras.

– Há três meses – disse-me ele.

– É, o tempo não dá a eles o direito que dizem ter.

Sentindo minha dúvida, Juarez investiu mais forte ainda, atacando o lado mais vulnerável de mim:

– Pago-lhe o que pedir, além de lhe conceder uma posição de destaque em meu garimpo.

Acho que nem pensei ao responder-lhe que aceitava. Já levava comigo o Otávio, um homem corajoso que, de tanto, fora mais tarde morto pelo índios do Amarante, e o meu irmão Vicente. Deixei este tomando conta do barranco onde meus homens garimpavam e, juntamente com Otávio, Juarez e mais quatro de seus homens, partimos para a fazenda, que ficava a uns 20 quilômetros do garimpo, voltando-se pela estrada que levava a Redenção. Dezesseis quilômetros, com dificuldades, foram feitos de carro, mas os quatro restantes, só mesmo a pé. Por causa da estrada cheia de atoleiros e de muita chuva, só chegamos na sede quando o sol já se punha. Cansado, disse ao Juarez que faríamos o trabalho na manhã seguinte.

Juarez tinha, na sede, mais 10 homens, porém só alguns se diziam com coragem para ir conversar com os invasores. Dois já haviam sido mortos em tocaias, o que justificava o receio deles. Ainda que nunca tivesse me furtado de tocaias sempre tive medo.

Logo que o dia amanheceu, armamo-nos quanto possível, traçamos nossa estratégia e partimos para o local onde o povo estava reunido com os tratores trabalhando. Havia sido combinado que eu iria sozinho falar com o líder deles e que, só depois, se necessário, tomaríamos medidas mais drásticas.

Acontece que eu ainda não havia me separado do grupo nem 10 metros, e de lá onde se encontravam (mais ou menos 50 metros) os posseiros já começaram a atirar.

Ainda tentei gritar que desejávamos apenas conversar, mas eles, talvez reconhecendo nisso medo de nossa parte, acirraram o tiroteio. Então nos escondemos atrás de murundus e árvores e traçamos nova estratégia. Eles levantaram as lâminas dos tratores e protegidos por elas, avançaram em nossa direção. Dei ordens para metade do grupo correr e dar a volta, atacando-os por trás, sem nunca ficar na nossa direção. Fiz aquela observação lembrando a falha que os ciganos cometeram na emboscada que nos prepararam.

Aí foi uma verdadeira batalha. Balas deles levantavam terra ao nosso redor, enquanto riscos de fogo de nossas balas ricocheteadas eram percebidos sobre os tratores. Nós tínhamos munição para meio dia de combate e não demorou para que a deles terminasse. Então se renderam, com dois feridos.

Expulsamos todos da área, providenciamos assistência aos feridos e mandamos uma ordem ao senhor Aloísio, dono dos tratores, para que viesse buscar as máquinas em três dias, caso contrário elas seriam incendiadas. No segundo dia quatro homens dele apareceram e levaram os tratores e tudo quanto disseram pertencer a eles, deixando-me um duro recado de que aquela era a última vez que eu estava perseguindo aqueles que desejavam um pedaço de terra para trabalhar. Em riste devolvi o recado, dizendo que ele podia marcar o lugar e a hora, que se ele fosse homem de me esperar, eu estaria lá.

Na verdade, eu sabia que aquela era mais uma das tantas duras advertências que havia recebido em minha vida, porque não há perigo maior do que lidar com covarde que tem dinheiro. Todas as vezes que um homem vinha a mim e discutia direitos, eu sabia que ali mesmo a questão terminava, porém aqueles que mandavam outros e evitavam o encontro sempre foram os mais perigosos. Contudo, fosse o que Deus quisesse. O que havia feito, estava feito.

Com a retirada dos tratores mandei buscar o Juarez, que já havia ido para outra fazenda e entreguei-lhe a área limpa. Ele desmanchou-se em agradecimentos e me perguntou quanto valia o meu serviço. Respondi-lhe que não era nada. Então ele me passou cinco vidrinhos de Cebion cheios de ouro (um quilo e meio) e também toda a coordenação do garimpo da Macedônia, inclusive a responsabilidade de receber os 10% do ouro extraído. Não satisfeito, ainda disse que eu teria 20% sobre as porcentagens. O Bateia ficou como meu auxiliar.

Retornei para Imperatriz, vendi o ouro, comprei o material necessário à construção da casa, contratei um mestre-de-obras e feliz como se tivesse acertado sozinho na loteria, no dia 10 de janeiro de 1981, retornei ao garimpo.

CAPÍTULO 25

Enfim, um pior que eu

Minhas suspeitas se confirmaram logo que reiniciei os trabalhos no garimpo da Macedônia. As emboscadas se sucediam, sempre com a sorte me protegendo milagrosamente. É que para se chegar ao garimpo tinha-se que seguir quilômetros por trilhas dentro de matas fechadas. Cada empuca era um perfeito esconderijo para quem desejasse eliminar seus desafetos.

Por causa disso sugeri ao Juarez que construíssemos um campo para teco-tecos. Ele concordou e, já em março de 1981, pequenos aviões traziam a gente de Redenção até ao garimpo, evitando o desconforto de se expor às tocaias.

Com sua primeira estratégia desfeita, Aloísio iniciou outra, agora em Redenção. Em minhas idas e vindas, deixava meu carro no Hotel Mogno. Depois, tomava o avião e vinha para o garimpo. Sem outra opção, os jagunços de Aloísio começaram a procurar um meio de eliminar-me em Redenção. Todas as vezes que eu mandava apanhar meu carro, o motorista o encontrava sem baterias ou com os pneus e o tanque furados.

Aquilo, além do medo, encheu-me de raiva, tanto que já não via a hora de deparar-me com eles e seus capangas para resolver de vez a questão. Sentia que corria um grande risco de vida, porque nesse tempo, no Pará, a lei não era cumprida mesmo. Todos os dias havia assassinatos, emboscadas e tudo ficava por aquilo mesmo. Mais raro que o ouro era encontrar um policial por aquelas bandas. Todo mundo sabia quem mandava, quem matava e nada lhe acontecia. Num ambiente assim, só mesmo com muita sorte um homem marcado como eu poderia sobreviver.

Cheguei a aprisionar seis pistoleiros de Aloísio, mas acabei deixando-os vivos, na certeza de que, se os eliminasse, outros tantos apareceriam, porque é bem possível que houvesse mais pistoleiros na região do que homens de bem.

Era muito difícil convidar alguém para algum trabalho sujo e ele não aceitar. Não bastasse, bandidos e pistoleiros, tão logo farejassem encrencas, procuravam uma das partes envolvidas para oferecer seus préstimos.

Apesar do risco, nunca ganhei tanto dinheiro como na Macedônia. Logo comprei o restante do terreno do José Aguiar e mandei construir mais duas casas. Aí, por inveja, maldade ou coisas piores, meus inimigos começaram a espalhar que minha riqueza advinha de empreitadas para matar, roubos de carros, de gado e tráfico de drogas. Minha fama já era tanta que ninguém duvidaria se dissessem que fui eu quem matou o prefeito Renato Moreira (de Imperatriz) ou quem, em maio de 1981, mandou que o turco Mehmet Ali Agca atentasse contra a vida do papa João Paulo II na Praça de São Pedro, em Roma.

Mal sabiam ou ainda sabem os invejosos que Deus Pai ajuda a quem vai à luta e que é inútil acreditar que Ele venha socorrer quem fica sentado esperando que os anjos lhe sirvam. Para conseguir o que eu estava conseguindo, até minha vida estava em jogo. Enfrentava tocaias e ameaças, aviões pequenos em tempestades sobre florestas intermináveis, emboscadas nas matas, nos caminhos e nas cidades. A comida era ruim, as noites, passadas quase sempre em claro, espantando muriçocas ou tocando cachaceiros que faziam arruaças na frente dos barracos.

Durante o dia, ora as chuvas, ora o disse-me-disse que me obrigava a tirar satisfação para encontrar a verdade, ora desmoronamentos... Enquanto isso, a mídia lá fora, sem saber da verdade, ajudada por inimigos invejosos, espalhava as mais perversas e mentirosas notícias de que suas mentes fartas eram capazes.

Mas não guardo ódio de ninguém. O resto de meus dias penso levá-los pedindo a Deus pela felicidade de todos eles que, com maldade ou sem ela, transformaram-me num monstro. Também quero usar o tempo para agradecer aos céus o haver me dado a oportunidade de conhecer Jesus Cristo.

Sei que muitos não irão acreditar nestes meus depoimentos, mas há neles dezenas e talvez centenas de pessoas citadas, ainda vivas e à disposição para confirmar ou não o que estou dizendo.

Sei que essa quase “comoção cristã” que ora me invade não será fácil de ser conservada, porque mesmo eu nunca acreditei em mudanças radicais. Digo apenas que estou feliz e que tudo farei para que esta paz nunca mais saia de meu coração.

CAPÍTULO 26

Um Abraão que não tinha nada de bíblico

Como se já não bastassem as tantas emboscadas que os pistoleiros de Aloísio me preparavam, agora uma nova encrenca era somada, como sempre, envolvendo-me sem que eu tivesse qualquer participação.

Quando retornei de uma de minhas viagens a Imperatriz, encontrei no garimpo um problema não menor do que eu havia arranjado com Aloísio. Apesar de meus constantes conselhos para que Bateia não se importasse tanto com algum ouro que saísse clandestinamente, ele ordenou que Manoel Fala Fina e Otávio fiscalizassem os garimpeiros, porque estava sabendo que havia compradores furtivos que estavam comprando ouro e fugindo sem pagar a percentagem.

Conversando aqui e ali eles descobriram que um rapaz, filho de um tal Abraão, farmacêutico em Redenção, estava contrabandeando o ouro, conforme suas suspeitas. Sem pensar duas vezes, mais para que servisse de exemplo a outros que poderiam estar com as mesmas intenções, eles pegaram o rapaz, tomaram o ouro e o espancaram na vista de todo mundo.

Quando cheguei já fiquei sabendo que estava, mais uma vez, jurado de morte e que a polícia andava em meu encalço. Mais uma família de inimigos eu acabava de arranjar, ainda que fosse totalmente inocente do que me acusavam.

Procurei o senhor Abraão e contei-lhe a verdade, inclusive dando provas de que eu estava em Imperatriz no dia em que tudo aconteceu. Propus-lhe devolver os 800 gramas de ouro que haviam sido tomados de seu filho, exigindo apenas que ele me pagasse os 10% a que eu tinha direito. Pedi também que ele me trouxesse o rapaz para que ele fizesse o reconhecimento, ou não, de minha pessoa.

O velho me respondeu que não havia dinheiro no mundo que desfizesse a surra humilhante que seu filho havia tomado na presença de centenas de pessoas. Assegurou-me que ele já tinha ido embora e que estava fazendo o mesmo, porque não vivia em lugar em que tinha sido desmoralizado.

Estava claro e evidente que ele não acreditou em uma palavra que eu tinha dito e que tentaria se vingar na primeira oportunidade que encontrasse. Nunca tive dúvida da sinceridade de um homem, depois de uma conversa como aquela que tivemos. Por isso, cheguei a levar a mão à cintura para eliminá-lo ali mesmo, mas acabei por acreditar no provérbio de que “quem não deve, não teme” e escorreguei a mão para o bolso, retirando um lenço e fingindo enxugar o suor do rosto. Depois tornei a me desculpar e saí dali, desde já olhando bem cada recanto ou esquina por onde passava.

De volta ao garimpo comentei o fato com o Bateia, assegurando que haveria vingança. Bateia disse que podia deixar com ele e saiu para atender um cliente.

Quando me dei conta, o novo boato de que eu me apoderava do dinheiro dos garimpeiros e ainda os espancava, tomava conta de cada fuxico de esquina. Um pouco mais, e ficava sabendo por meio de amigos que o comentário já não era que eu batia e sim que matava, como se faz a um animal asqueroso.

Quando cheguei em Imperatriz, o boato não era outro. O pior é que eu estava ganhando muito dinheiro, tanto que já mandara construir mais duas casas e só andava em camionetas novas. Isso dava margem para as mais férteis invencionices dos invejosos. Com a coisa se tornando insuportável, resolvi abandonar o garimpo e voltar a me dedicar ao amanho da terra, técnica que herdara de meu pai.

Em setembro de 1981, comprei duas fazendas do Rui da Domasa (Domasa era uma indústria madeireira de Imperatriz) e me decidi mudar de vida mais uma vez. Entretanto, quando voltei ao garimpo para dizer ao Juarez de minha decisão, ele reagiu, dizendo que precisava de mim e que já havia comprado um avião 210 com a finalidade de evitar nossa permanência nos aeroportos. Disse haver contratado o Diabinho Goiano, um dos melhores pilotos de Goiás, e que eu podia ficar sossegado que os pistoleiros não teriam mais a oportunidade de me flagrar esperando avião nos aeroportos. Com a aeronave sendo de nossa propriedade – explicou-me – o piloto já nos esperará com os motores acionados e não daremos tempo a qualquer ação de pistoleiros.

Então prometi a ele que iria continuar por mais algum tempo, pelo menos até que ele encontrasse alguém que pudesse me substituir. Ele concordou e reiniciamos os trabalhos.

De minha mente, porém, não se apagavam aquelas palavras acusadoras de Abraão. Eu seria capaz de jurar que ele iria se vingar, ou pelo menos tentar. O certo é que, pela convivência com pessoas violentas e agressivas, eu não tinha qualquer dúvida de que ele iria se vingar.

CAPÍTULO 27

A perversidade dos Munducurus

Depois de uns oito meses trabalhando no garimpo da Macedônia, eu e mais cinco garimpeiros resolvemos dar uma busca numa parte da mata que distava dali uns oito quilômetros, a fim de constatar, ou não, a veracidade sobre uma grota que diziam ainda mais rica em ouro do que o local que estava sendo explorado.

Saímos bem cedo e fomos margeando o igarapé a montante. A caminhada foi facilitada por outros curiosos que já haviam aberto uma picada pela qual a gente podia caminhar razoavelmente. Também não levávamos senão nossas armas. Apenas eu, além das armas, carregava comigo a inseparável máquina fotográfica. Em menos de duas horas de caminhada, notamos um pequeno clarão adiante, denotando uma derrubada. Resolvemos constatar.

Logo no aceiro, percebemos que algo estranho estava acontecendo ou havia acontecido ali, porque o silêncio era sepulcral. As roças e a pastaria estavam bem cuidadas, havia gado e bastante outras criações..., enfim, para uma fazenda dinâmica como nos parecia, era de se estranhar o silêncio que reinava.

Um carreiro de gado, bastante limpo e pisoteado, indicava a direção da sede e para lá fomos seguindo. Minutos depois, descobrimos a triste razão daquele enigmático silêncio. Ali havia sido cometido um dos maiores massacres de que já se tivera notícia em toda a região.

Dezenas de corpos mutilados por cutelo e borduna encontravam-se espalhados pelo terreiro. Crianças de 5, 8 e 10 anos jaziam trucidadas. Uma criança ainda de fralda estava morta ao lado da mãe grávida, que tinha, na vagina, uma borduna enfiada.

Os homens, com as cabeças esmagadas e os corpos perfurados por lanças e flechas, davam um aspecto de selvageria nunca vista. Apesar de tanto já ter visto cenas horripilantes, comecei a me sentir mal. Afastei-me e fui sentar-me sob uma mangueira que havia no canto do terreiro. Meus companheiros adentraram na casa e voltaram com notícias ainda piores: lá dentro havia muitos outros assassinados ainda com requintes piores de selvageria.

Notava-se que os mortos não tiveram qualquer chance de defesa e que as hostes inimigas lhes eram bem superiores. Meus companheiros, não menos abalados que eu, também se assentaram sob um tronco de angelim, mantendo-se calados, abatidos com aquilo que viram.

Passado o primeiro impacto, tirei minha máquina fotográfica da bolsa e, muito nervoso, fui colhendo algumas imagens. De repente, ouvimos uma voz temerosa, vinda de uma moita a uns 40 metros de nós. Era voz de homem e perguntava se éramos amigos. Respondi que sim, e ele, sem muito a perder, aproximou-se.

Chamava-se Geraldo e era o gerente daquela fazenda. Disse ser goiano e que há um ano estava ali, convivendo pacificamente com os Mundurucus, uma ramificação dos Guajajaras que habitavam grande parte da região. Para tanto, na época que para ali foi mandado, combinou com o cacique que daria à sua tribo uma rês de seu rebanho todo mês, como arrendamento daquelas terras.

A intenção primeira do patrão de Geraldo era, com o tempo, beneficiado pelo usucapião, ficar com aquelas férteis terras da Reserva Indígena. Mas ele sonhava ainda mais alto, pois era grande o boato de que toda aquela Reserva era rica em ouro, o mesmo ouro que eu e meus cinco companheiros estávamos procurando.

Acontece que, não encontrando ouro, o patrão esmoreceu e Geraldo e mais três famílias, todas parentes, inclusive dois genros com vários filhos, começaram a atrasar a entrega da rês prometida. “Índio mandou dizer que trato era trato e que branco ia ter que cumprir palavra”.

Sem conhecer a cultura indígena, talvez pensando vencê-los pelo cansaço, como muitos de nós brancos fazemos, Geraldo deixou a data passar sem entregar o boi prometido. Três dias depois, quando procurava um bezerro que havia fugido do curral, ouviu os gritos de guerra dos Mundurucus e os de pavor de todos seus familiares. Ainda fez menção de acudir, mas entendendo que seria suicídio, fugiu para as matas, até que tudo acabasse. Depois voltou de mansinho, encontrando-nos no terreiro.

Eu e meus companheiros o ajudamos a enterrar os mortos e depois o acompanhamos até ao garimpo da Macedônia, de onde, no outro dia, ele voltou para sua terra. Terminava, assim, mais uma dura lição de ganância que, infelizmente para ele, nem chance de aprender tivera. Estava marcado para o resto de seus dias. Com certeza, melhor lhe fora ter morrido juntamente com todos seus familiares. E, mais uma vez, o verdadeiro culpado ficaria em paz gozando das delícias de Goiânia.

CAPÍTULO 28

A tragédia

Por sorte minha, estranha coincidência ou mão de Deus, nesse dia, Bateia veio em meu lugar buscar Juarez, que aguardava no aeroporto de Redenção. Quando desembarcou, três homens se acercaram dele e o fuzilaram sem piedade. Depois, ameaçaram Juarez, dizendo que ele tinha 40 dias para pagar o que lhes devia e que, mesmo assim, ele e eu iríamos morrer também.

Ao ouvir a história, fiquei extremamente preocupado, porque sabia que estavam falando a verdade. Em Redenção, Xinguara, Rio Maria, Conceição do Araguaia e regiões circunvizinhas imperava a lei do mais forte e, no momento, não me parecia que os mais fortes éramos nós. Pensei em deixar tudo e fugir o quanto antes, porque na altura daqueles acontecimentos já seria uma grande conquista eu voltar vivo para minha casa. Para aumentar minha insegurança, aquelas imagens do massacre munducuru não me saíam da mente.

Disse ao Juarez que não podíamos mais pousar em Redenção e que o avião tinha autonomia de vôo para sair de outra cidade e chegar ao garimpo. Aconselhei-o a não viajar sem seguranças, o que ele acatou, logo me escalando como um deles. Acompanhei-o ainda nas três últimas idas a Redenção, porque precisava acertar algumas contas e combinar a nova rota.

Temendo também pela vida de meu irmão Vicente, resolvi tirá-lo do garimpo e trazê-lo para Imperatriz. Afinal, ele não tinha qualquer envolvimento com crimes e maracutaias e não era justo envolvê-lo, como fizeram a mim. Infelizmente, quando saltamos do avião, pedi a ele que também empunhasse uma carabina e, de armas nas mãos, passamos pelas ruas e fomos ter ao hotel. Imagine você como funcionava a lei naquela terra de ninguém.

A bem da verdade, nem sequer admiração causamos com nosso comportamento estranho. Poucos se preocupavam em esconder suas armas. Muitos faziam questão de carregar seus revólveres por fora da camisa e, com certeza, não era para simples demonstração de coragem não. Na maioria da vezes, as mortes aconteciam justificadas apenas por um olhar dado no momento e hora errados. Todo mundo andava assustado e de sobreaviso.

Quando fomos olhar nosso carro no Hotel Mogno, mais uma vez o encontramos com o tanque furado. Ressabiado, desconfiei que a emboscada seria naquele dia. Sempre muito atento, pedi ao amigo José Aguiar para procurar um mecânico e mandar consertar o tanque. Deixa que os pistoleiros estavam hospedados no hotel, esperando apenas a minha chegada. Logo que notei pessoas estranhas e mal-encaradas, fiquei cabreiro, jamais me distraindo. Não tirei a carabina das mãos um só instante.

Os pistoleiros, para sorte minha, acharam de confabular exatamente com um homem que me conhecia e que, na primeira oportunidade, me relatou o fato, dizendo que eles iriam me esperar no caminho entre Redenção e Xinguara. Daí para frente, as coisas ficaram um pouco mais claras e fáceis para mim. Sem distrair-me um segundo, esperei que o carro ficasse pronto. Quando comecei a colocar a bagagem, os dois saíram para se juntar ao chefe deles, um tal de Pedro Paraná, que já os aguardava com mais cinco pistoleiros.

Como já tinha sido avisado, decidi tomar outra estrada, percorrendo mil quilômetros a mais, só para evitar o confronto que, com certeza, me seria desvantajoso. Passei por Conceição do Araguaia, Colinas de Goiás, chegando depois a Imperatriz.

À noite, pensei seriamente em deixar tudo, mas, por incrível que pareça, minha palavra dada ao Juarez, assim como a responsabilidade que tinha para com aqueles que lá havia deixado, foram mais fortes que o meu medo de morrer. Assim, logo no mês seguinte, retornei.

Para ser sincero, eu já vivia numa tensão tão grande que até torcia para encontrar os capangas que me perseguiam para decidir de uma vez todo o impasse. O pior é que nem sabia mais se os capangas vinham da parte de Abraão ou de Aloísio, porque ambos haviam me jurado de morte.

Pela amizade e gratidão ao Juarez, voltei ao garimpo e o fiz de forma ousada, indo de carro e me hospedando, novamente, no QG da bandidagem: o Hotel Mogno. Permaneci ali alguns dias antes de viajar para o garimpo, sem que percebesse qualquer movimento estranho.

Quando cheguei ao garimpo falei para o Juarez que ele devia tomar muito cuidado, porque o prazo dado pelos bandidos estava se esgotando e promessa de bandido costuma ser levada mais a sério do que a dos romeiros de Aparecida. Sem me levar muito a sério – assim como Bateia –, ele disse que sabia se defender e que eu devia ficar despreocupado. Para que ele tomasse mais cuidado, disse-lhe que havia tido um sonho horrível e que temia muito pela vida dele, porque muitos dos meus sonhos trágicos do passado haviam se concretizado. Ele me bateu no ombro e saiu sorrindo, como se o aviso não passasse de demonstração de afeto e amizade.

No mês de novembro de 1981 eu estava no garimpo quando Juarez chegou para acertar contas com os garimpeiros, porque durante sua ausência os trabalhadores apanhavam mercadorias fiado e também deixavam o ouro garimpado para que ficasse como garantia.

Como seu auxiliar, fui até a cantina e comecei a chamar os garimpeiros para o acerto de contas. Dois dias depois tudo estava certo e Juarez me disse que estaria viajando para Goiânia a fim de vender o ouro arrecadado naquele mês.

Sempre com um horrível pressentimento, sugeri-lhe que não parasse em Redenção, pois o prazo dado pelos bandidos já havia se esgotado há uma semana. Ele novamente desconversou, dizendo que teria de permanecer na cidade pelo menos por três dias, para acertar as contas com garimpeiros do Cumaru, aos quais havia adiantado dinheiro. Tranqüilizou-me dizendo que estaria com quatro guarda-costas da pesada e que nada iria lhe acontecer.

E assim ele fez. Mas o “vigiai e orai porque não sabeis o dia nem hora” não foi por ele observado. Nos dois primeiros dias ele não deu um passo sem a guarda de lado. No terceiro, porém, depois do jantar, disse aos companheiros que o protegiam que podiam descansar, que ele só ia ao botequim da esquina tomar uma cerveja e já estaria voltando. E, de fato, ele voltou logo, porém todo furado de balas. Os pistoleiros o surpreenderam e o abateram como a um cão.

A notícia logo me chegou pelo rádio. Concluí que a minha vez era chegada, porque eles disseram que, depois do Juarez, seria a minha vez de dar adeus a este mundo. Acredito que, se há algum órgão perfeito em meu organismo, com certeza o coração é um deles. A cada instante que eu pensava no problema o rosto parecia pegar fogo e o coração disparava, como quando a gente toma um grande susto. Novamente, sombras e ruídos eram pistoleiros me cercando e eu já não conseguia cerrar as pálpebras. Nos olhos, sempre aquelas crianças trucidadas pelos índios. Então perdi o controle e resolvi enfrentar a situação, mesmo porque eu teria que passar por Redenção para apanhar meu carro e voltar.

Vendi tudo o que possuía no garimpo (motores, dragas, tralhas...), tomei o avião e voei para Redenção. Novamente já desci com uma carabina Puma calibre 38 na mão direita e a mão no cabo do revólver Colt. Não estava mais me importando com nada, porque pior, que enfrentar uma cilada, é esperar por ela. Consegui chegar ao hotel, e quando fui tomar o carro, eles haviam tirado a bateria. Já com a paciência minguada, chamei o dono do hotel e disse que ele iria me pagar a bateria, porque devia ter responsabilidade pelos objetos de que cobrava a guarda.

Vendo o estado em me encontrava e já farto de saber das tramas que se sucediam, ele não discutiu. Mandei buscar a bateria, descontei do que deveria pagar ao hotel e quando já manobrava para sair, deparei-me com o amigo Adauto, que fez sinal e se aproximou:

– Zé, não saia agora. Os homens já cercaram as duas estradas e desta vez não há como você escapar.

Respondi-lhe totalmente fora de mim:

– Pois eles irão me matar, porque tenho que ir embora e não há outro caminho.

Mais uma vez aconselhado, resolvi esperar até a noite cair, a fim de fazê-los crer que eu havia mudado de idéia e não mais viajaria naquele dia. Às 23 horas saí e exatamente como havia imaginado, passei por eles já retornando da tocaia, na entrada de Redenção. Quis Deus que o encontro se desse num lugar escuro e largo, onde por coincidência passamos longe um do outro. Ainda que eu os tivesse reconhecido, não aconteceu o mesmo com eles. Continuei dirigindo devagar para não levantar suspeitas, mas quando dobrei a primeira curva, acelerei tudo o que podia, mantendo o ritmo por quase toda a noite. Muitas vezes quase a camioneta capotou, mas eu jamais aceitaria qualquer farol que se aproximasse pela retaguarda.

No outro dia, já com o sol alto, mais bonito do que todas as vezes em que brilhou no céu de minha vida, cheguei a Imperatriz. Minha família me esperava ansiosa. Durante todos os dias que se seguiram, eu parecia levitar, tal o peso que havia deixado para trás. Por isso, se a mim fosse dada a incumbência de um conselho, eu diria, a todos para que não se esqueçam de que não são eternos, que há um Deus e que daqui não se leva nada, que repensem a ganância e a violência, para que, ao menos nesta vida, vivam fora do inferno.

CAPÍTULO 29

Manoel Magarefe

Durante uns três meses fiquei trabalhando nas terras, ora nas de meu pai, ora nas minhas. Todos que lidam com fazendas sabem que o retorno é pouco e demorado. Comecei a sentir falta dos bons tempos da Macedônia quando, em uma semana, eu ganhava mais que em dois anos criando gado, porcos e aves. Ainda que o dinheiro sempre tivesse exercido sobre mim um grande fascínio, para lá eu não pensava voltar, nem se soubesse que iria esbarrar a ponta da picareta numa pepita de 100 quilos. Já me bastavam as chances dadas por Deus.

Mas havia Serra Pelada, só que poucos estavam achando ouro, porque este, através de eras geológicas, formara um filão tortuoso pela montanha e acertá-lo, num simples barranco de 3 metros por 2, não era diferente de acertar numa loteria qualquer. Mesmo assim resolvi matar a saudade, viajando por mais de um ano de Imperatriz para Serra Pelada, arriscando a vida em pequenos e velhos aviões que nem sempre aterrissavam nos lugares certos. Esses aviões eram conhecidos como “cai-cai” e trepidavam no ar como um Jeep sacode em estrada de chão cheia de buracos.

A vida até já se tornara monótona quando, por amizade, acabei envolvendo-me em mais uma encrenca. Não diria a pior, porque muitas das anteriores só me deixaram com vida porque Deus o quis, ainda que eu não entenda Seus desígnios.

Em 1982, o pistoleiro conhecido como João do Zeza, juntamente com sua gangue – Milton Mariano, João Carroceiro e o irmão Jesus –, assassinaram o prefeito de São Domingos do Maranhão, Edmilson Pereira. Nesse tempo eu não conhecia nem o Prefeito nem qualquer membro da família Pereira. No entanto, em 1983, mudaram-se para Imperatriz, com suas respectivas famílias, dois Pereiras: Valdemar e Lourival.

Um meu velho amigo, Manoel Barros, também conhecido como Manoel Magarefe, era genro de um deles, o Valdemar, um dos marcados pela patota do Zeza para ser eliminado. Como a lei que imperava nesses casos era a da vingança sumária, os bandidos resolveram eliminar não somente a família Pereira, mas qualquer um que se interpusesse. Manoel Magarefe não representou qualquer exceção.

Na Sexta-feira Santa, abril de 1983, João do Zeza, Milton Mariano, João Carroceiro e seu irmão Jesus – que do Nazareno não tinha nem a barba – invadiram a farmácia do Valdeci, que fica situada na Avenida Dorgival Pinheiro de Sousa, para assassinar o Manoel Magarefe, que ali estava comprando medicamentos. Depois de várias tiros à queima-roupa, imaginando que Magarefe estivesse ferido de morte, fugiram do local.

Mas Manoel era forte como um touro e, ainda que seu estado fosse gravíssimo, conseguiu chegar com vida ao Hospital Santa Maria. Com a ajuda competente dos médicos, em menos de uma semana ele já recebia alta, ainda que forçada. É que o proprietário do hospital, Dr. Haroldo Cristovam Chagas, mostrava-se temeroso ante os boatos de que os pistoleiros estavam prontos para invadir seu hospital e consumar o crime.

Como Dr. Haroldo era e ainda é médico de minha família, resolvi livrá-lo daquela angústia, aceitando a sugestão de levar Manoel para casa e trazê-lo, todos os dias, para que os medicamentos fossem ministrados e os curativos refeitos.

Havia policiais velando pela ordem, mas a direção do estabelecimento não confiava, porque os pistoleiros estavam soltos e mandando recados a cada dia. Assim era Imperatriz nesse tempo, ainda que, hoje, não consigamos entender.

Pois bem, no terceiro dia, retornando com o amigo do Hospital, ao adentrar em sua casa, fomos surpreendidos pelo Milton, pelo Jesus e mais seis pistoleiros. Eram 20 horas e eles invadiram a casa atirando como loucos, deixando-nos aturdidos pela surpresa.

Como pudemos, reagimos, atirando também e procurando uma posição que nos garantisse a vida. O tiroteio demorou horas. Eu protegia o amigo como podia, velando a entrada do lugar onde ele se encontrava ferido. Mas os bandidos eram muitos e houve momentos que pensei que não daria conta de amedrontá-los. Eles acabaram por ferir mais uma vez o Manoel e por assassinar o seu filho mais novo. Ao perceberem que haviam sofrido duas baixas, bateram mais uma vez em retirada, enquanto eu voltava às pressas com o amigo Magarefe para o Santa Maria.

Manoel ainda não havia sido atendido pelos médicos quando o delegado Valber Dourado cercou o Hospital para me prender. Ele estava com 40 soldados das Polícias Civil e Militar. Ao abordar-me com voz de prisão, repeli-o, dizendo que o tiroteio fora nas proximidades da delegacia e que eles deviam ter interferido naquele momento, já que por mais de uma hora ficamos à mercê de oito pistoleiros, lutando como loucos para salvar nossa pele. Sem dar ouvido, talvez confiando no batalhão que o acompanhava, ele insistiu para que eu entregasse as armas e o seguisse. Ante minha negativa, ele agarrou o cano de minha escopeta e, energicamente, tornou a dizer que eu estava preso.

Então, saquei de meu inseparável Colt, coloquei-o no peito dele e ainda com o dedo no gatilho da escopeta já armada, retruquei de maneira convincente:

– Se eu fosse o senhor, não tentaria me desarmar agora. Aconselho-o a mandar os soldados embora e entrar comigo num destes consultórios para conversarmos.

No curto período de silêncio que se fez até que a resposta fosse dada, o Dr. Haroldo quase desmaiou. Logo abriu uma sala e pediu pelo amor de Deus para que não bagunçássemos o seu hospital.

– Tenha calma, Dr. Valber – implorou Dr. Haroldo. Os ânimos estão muito exaltados. Dê um tempo para que volte a calma e vocês possam resolver o problema.

O delegado aceitou a sugestão soltando o cano da escopeta. Repus minha arma na cintura e fomos conversar. Lá dentro, o delegado ligou para o secretário estadual de segurança Silva Júnior e ficou acertado para que no outro dia eu me apresentasse a ele na delegacia.

A polícia deixou o hospital, os médicos terminaram os curativos no braço alvejado do Manoel e retornamos para casa. Passamos a noite velando o corpo do rapaz que havia sido assassinado e no outro dia demos-lhe sepultamento.

Ainda que a situação fosse trágica, logo o jornalista Jurivê de Macedo, estampou a notícia em sua coluna: “Teve briga, ontem à noite, na Rua Sousa Lima, mas a polícia não pôde nem se envolver, pois se tratava de José, Jesus, enfim, do povo de Davi.” Ainda que estivesse fazendo humor com coisa mais que séria, não levei em conta, porque Jurivê é um homem bom que nunca soube fazer jornalismo de forma diferente. A vida pra ele foi, é e acho que sempre será uma piada. Acredito até que ele tenha razão, porque um dia ouvi um padre de origem alemã, Antônio Wolkers, dizer que “somos palhaços de Deus”.

Voltando do cemitério, tomei um banho e me preparei para ir ver como estava o amigo Manoel Magarefe. Pretendia, além de fazer-lhe companhia e dar-lhe proteção – já que a “rapaziada” podia voltar a qualquer momento –, demonstrar a ele minha solidariedade pela perda que tivera do filho. Sinceramente, eu tinha certeza absoluta de que os dias do amigo Magarefe estavam contados. Já disse e agora repito: dependendo da pessoa que nos jura, só matando primeiro para assegurar nossas vidas. Há delas que não desistem nunca!

Ao chegar próximo à porta de minha casa, vi que a rua estava cheia de policiais, com o capitão Vinícius à frente, dando-me ordem de prisão. Ordenou que eu abrisse a porta. Estava tão desequilibrado emocionalmente que nem percebeu que a mesma estava apenas encostada. Percebendo sua distração, pedi-lhe licença para ir buscar a chave, mas fui direto ao meu quarto e apanhei a escopeta. Voltei com os dois cães engatilhados, pronto para derrubar um bom bocado deles. Não imaginem minha grata frustração quando, ao levar a arma, vi na frente o meu filho Hílton, o Macarrão. Baixei-a e entreguei-me.

Mais uma vez o meu fim era adiado de forma estranha. Ninguém tem dúvida de que, se não estivessem usando meu filho como escudo, eu teria disparado contra os policiais, matado alguns e depois sido morto por eles.

Nesse dia, o capitão Vinícius perdeu completamente as estribeiras e a compostura. Saiu pelas ruas correndo na frente das viaturas e mandando prender muitos de meus familiares que não tinham qualquer relacionamento com o problema. Com isso, entre outros, foram comigo o Manoel, meu irmão Quincas e o Lauro Ramos. Ficamos apenas 10 dias presos.

Nesse tempo, ainda havia “amigos” que me socorriam. Alguns tinham o famoso “rabo preso”, outros, sérias questões a resolver e, para isso, precisavam de minha “amizade”. Sei que, ainda hoje, policiais, promotores e juízes há infiltrados na bandidagem, mas naquele tempo era muito pior, mais aberto... Agiam como se apenas os interesses deles fossem importantes.

E foi assim que me visitou um “promotor”, Dr. Luís Gomes, que, cheio de si, nem fez cerimônia para perguntar-me como eu gostaria que ele formalizasse o ocorrido.

– Meu parecer sairá do jeito que o senhor achar melhor.

Mais decepcionado que feliz, respondi que ele devia saber o que era melhor para ambas as partes. Ele entendeu e logo depois eu era solto por “falta de provas”.

Numa terra assim, eu sentia pena de alguns pobres coitados que procuravam andar certinhos, imaginando que suas virtudes pudessem ser reconhecidas. Sentia mais pena ainda quando essas pessoas, com todos os direitos legais, precisavam da Polícia e da Justiça para fazer valer a lei, sem imaginarem que a lei deles estava sujeita a outra lei imperativa e cruel, exercida, principalmente, pela gangue política do Estado.

Convivi nesse meio, e posso assegurar que, por mais pródiga que tenha sido a imaginação de Aghata Cristie, jamais ela escreveu, com tinta, uma história mais sórdida do que tantas que nossos políticos e afins escreveram, com sangue, por aqui.

Eles, assim como a maioria dos “homens de bem”, hoje respeitados como policiais de renome, industriais e comerciantes bem sucedidos, juízes e afins... vieram a mim, passando ou pelo menos tentando passar por cima de tudo o que é legal e moral, para “vencerem nesta vida”. Nesta, muitos conseguiram: resta agora ver como se sairão na outra.

CAPÍTULO 30

De ladrão a roubado

Longe de mim querer que me construam um altar pela vida que levei até aqui. Ela foi uma das mais atribuladas que um ser humano possa levar e minhas reações foram sempre coerentes com o ambiente em que vivi. Por isso levei tiros e os devolvi, dei tapas e os levei, feri e fui ferido. Eu vivi até agora no meio de gente que sempre achou que a lei deve ser imposta e não obedecida e que a Constituição não passa de um monte de interesses escusos de quem a escreveu e aprovou.

Até então, nenhum padre ou pastor, nenhum convicto de qualquer religião ou seita havia me procurado para dizer de outro caminho a seguir. E naquele que me vi jogado, tornei-me um animal levado pelo instinto da sobrevivência. Senti-me sempre uma hiena de savanas, escapando de insaciáveis predadores e me alimentando dos restos de suas presas. Assim, exatamente como as hienas, apesar de não matar a presa, sempre fiquei com a fama de um animal asqueroso e cruel.

Mas os leões continuam rei, enquanto eu estou metido entre quatro paredes, amargando minha triste sina de haver nascido ingênuo. Não há quem não tenha aprendido a lista completa de adjetivos pejorativos, para escrever as histórias que contam a meu respeito. Mas, para que tenham uma idéia diferente, vou relacionar um pouco de meus negócios, em todo esse tempo tormentoso de minha vida.

Adquiri terras do Rui da Domasa, do Dr. Aureliano Neto, do Messias e do Ademar, todas em Ribeirãozinho e praticamente ligadas umas às outras; de Pedro Ladeira (Fazenda Saramandaia, em Montes Altos); da viúva do Sr. Otávio, no Amarante; do Dr. José Martins, antes um pouco do Amarante; e muitas outras, sendo que a maioria das pessoas que negociaram comigo ainda está bem viva por aí e poderá atestar, ou não, a lisura das transações.

De nenhum deles precisei tomar um centímetro de chão e a todos paguei conforme o combinado. No entanto, muitas outras que também comprei, paguei e fiz documentos, hoje já não são minhas: todas ocupadas e tomadas, como costumam dizer, na marra. Mesmo assim os usurpadores estão vivos, o que deve frustrar muita gente.

Perdi 600 alqueires no município de Balsas, 2.500 alqueires no município de Grajaú e outros pedaços menores de terras. Mas dessas coisas ninguém se lembra, não procura saber e afirma nunca ter ouvido falar. De fato, o provérbio “faça a fama e fique na cama” ainda continua válido como quando foi proferido há séculos.

CAPÍTULO 31

O fim de meu amigo Magarefe

Passadas as duas primeiras tentativas, sempre soltos, os desafetos de Manoel Barros (o Magarefe) deram um tempo, certamente para arquitetar um plano que não viesse a falhar mais uma vez. Até o momento, eu continuava como mero apaziguador, defendendo o amigo, mas sem ter qualquer problema com aqueles que queriam lhe tirar a vida. Eles sabiam disto e sempre respeitaram minha posição, porque também eles estavam, praticamente, nas mesmas circunstâncias.

Vocês já viveram a impressão de que, quando uma parte do corpo está dolorida, as coisas só esbarram nela? No entanto, a verdade é que, quando tocamos com as partes não machucadas, porque não doem, nem percebemos. O mesmo acontece com as nossas vidas. Se temos problemas, sempre nos parece que há algum acontecimento para lembrá-los. É um verdadeiro quebra-cabeça que sempre se encaixa no fim, conforme as peças que o povo monta.

Muito temeroso, Manoel resolveu vir morar perto de mim, pois se sentia seguro em minha companhia. Em 1983 eu adquiri de José Aguiar uma área de terras no distrito de Sumaúma, mas só fui trabalhá-la no ano seguinte. Nesse ínterim, o amigo Manoel Magarefe apresentou-me dois seus amigos mineiros que também comercializavam gado: Fernando e Gonçalinho.

Não precisou mais do que conhecê-los, para ficar envolvido em mais um crime que não cometi. No mesmo ano de 1983, Magarefe, Gonçalinho e Fernando foram a uma fazenda que está localizada um pouco antes de São Pedro da Água Branca e, a mando da família Leite, mataram uma família inteira de mineiros que morava lá. Imagino que tenha sido por problemas antigos, acontecidos em Minas Gerais, mas desse detalhe nunca fiquei sabendo. Não lhes perguntei o motivo e, por eles mesmos, também não mo contaram. Ainda que curioso, mantive-me discreto.

Além deste processo, arrumaram-me mais um de que também sou inocente. É que, misteriosamente, os papéis que havia contra mim devido ao já citado problema da Fazenda Cipó Cortado no ano 1982, segundo o advogado Dr. Wena, desapareceram de cima da mesa do Juiz da Vara Criminal. Estou registrando esta passagem porque vai ser citada mais adiante.

Depois das primeiras audiências e dos “explica aqui, ajeita acolá”, deram-me um curto tempo de sossego e o aproveitei para voltar ao trabalho no garimpo de Serra Pelada. Serra Pelada já se tornara uma cidade com mais de 20 mil habitantes. Ali havia gente de todos os naipes: bandidos, sonhadores, trabalhadores... Muitos, ainda que ali estivessem há meses, eu não os conhecia.

Por isso, só fui me deparar com os pistoleiros (os mesmos em que tive de atirar até com os dedos para salvar a vida do Barros naquela invasão domiciliar), um mês depois do caso passado. Tivemos logo uma conversa franca, pois quis saber o que eu significava pra eles naquela altura do campeonato. Eles me garantiram que não havia nada contra mim e que até respeitavam minha preocupação para com o amigo, mas que Valdemar e Lourival Pereira, assim como Manoel Magarefe, iriam morrer de qualquer maneira.

Ainda que pareça estranho para os leigos no assunto, convivendo com esse tipo de gente, aprende-se a deduzir quando a verdade está ou não sendo dita. Uma vez, conversando com um caçador, ele me garantiu que depois de quase meio século caçando por todo o Brasil, ele conseguia reconhecer o sexo de um pássaro até pelo ruído de seus passos nas folhas secas. Nada a duvidar, porque em muitas espécies não há diferenças marcantes entre os sexos, e o reconhecimento é feito por detalhes, para nós imperceptíveis.

Por isso, depois de tanto conviver com bandidos, pude deduzir que estavam falando a verdade. Para comprovar, logo eliminaram o Valdemar e dois de seus filhos e o Lourival e um filho, dando-me tempo para forçar o amigo Magarefe a evadir-se para terras desconhecidas, sem ao menos deixar o endereço. Ele acreditou em minhas palavras e fugiu para Pernambuco. Mas deve ter falhado em algum ponto, porque alguns meses depois ele foi descoberto e, desta vez, eu não estava mais do seu lado para ajudá-lo. Perdi o amigo, ficando apenas com mais algumas imputações que lhe eram devidas.

CAPÍTULO 32

João Menezes

No livro “18 anos de Imperatriz - o que vi, li e ouvi”, o escritor Livaldo Fregona conta o que ouviu de alguém que dizia conhecer boa parte de minha vida, principalmente no que se refere aos entreveros com João Menezes. Longe de mim passar por santo, mas a verdade é que ninguém nunca pensou duas vezes em declarar-me culpado em qualquer encrenca que me metia.

As pessoas nunca se deram o trabalho de pensar que, como eu, há homens no mundo bem piores. Piores sim, porque pecado maior comete aquele que manda. Se Pilatos não houvesse lavado as mãos, Cristo não teria sido crucificado. Ressalva-se aqui o inevitável, segundo o qual as Escrituras tinham que ser cumpridas. É de quem tem o poder nas mãos a maior responsabilidade por tudo quanto acontece, tanto de bom como de ruim. Veja por exemplo se há o nome ou estátuas dos trabalhadores braçais que construíram Brasília, a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, o Cristo Redentor no Pão de Açúcar, a hidrelétrica de Itaipu...

Segundo o depoimento prestado por um decano da cidade, eu roubei todo o gado de João Menezes e, no fim, não satisfeito, ainda fiquei com a fazenda dele. Mas veja a minha versão, que reputo verdadeira:

Em 1984 fui trabalhar na área de terras que, um ano antes, eu havia adquirido de José Aguiar. Essa terra ficava nos fundos da fazenda do João Menezes. Ele já tinha estrada e então fui pedir-lhe que me cedesse passagem, no que foi intransigente. Então, solicitei que me vendesse, na divisa dele com o outro vizinho, um tira de 12 metros, por onde eu construiria uma estrada para chegar às minhas terras. Nova negativa.

Aí o lado Dr. Jeckyll despertou em mim. À revelia de João Menezes, mandei roçar uma tira, agora não mais de 12 metros, mas sim de 500 metros, e na valentona, fiz minha passagem.

Imediatamente ele me denunciou, perseguindo-me com sucessivas denúncias, chegando a fazê-las até em Brasília. Não bastasse, foi incansável em espalhar o boato de que eu havia tomado suas terras e roubado seu gado. Nem precisava ter se esforçado tanto, porque o povo acreditava em tudo o que se falava de ruim de minha pessoa.

João Menezes era uma ótima pessoa. Eu não tinha raiva alguma dele; só estranhei como, sendo ele tão bom, houvesse faltado com a solidariedade num momento em que tanto precisava de sua compreensão.

Ele se mudou de Imperatriz, mas foi incansável em perseguir-me com calúnias e processos. Mesmo assim, nunca me passou pela cabeça o que ele andava espalhando, ou seja, que eu estava em seu encalço para matá-lo. Tentando amenizar a situação, procurei o senhor Cândido, amigo de ambas as partes, e pedi a ele para conversar com o Menezes, perguntando-lhe pelo preço da área que eu havia ocupado, porque queria pagar. Ele mandou o valor e eu entreguei o dinheiro ao Cândido, imaginando que o problema seria esquecido.

Mas Menezes continuava dizendo que eu iria matá-lo e que não correria o risco de voltar para sua fazenda. Foi denunciar-me para um outro grande amigo, o Dr. José de Ribamar Fiquene. Conheço Fiquene desde 1964, quando era juiz em Dom Pedro (MA). Foi ele quem me casou no civil.

Fiquene mandou outro grande amigo, o advogado José Clébis, chamar-me, dizendo que precisava falar comigo. Acompanhado do Dr. Clébis, fui estar com ele. Pelo nosso longo relacionamento, Fiquene falou muito à vontade e senhor de si:

– Zé, que diabo está querendo fazer com meu amigo João Menezes? Ele está assustado, dizendo que você o está procurando para matá-lo. Mandei chamá-lo porque quero que você não mexa com ele.

– Mas, doutor, eu não disse que iria fazer qualquer mal ao Menezes. O senhor já sabe de toda a história. O lugar em que passo já até paguei e por mim o assunto está encerrado. Pode dizer a ele que nunca me passou pela cabeça tirar-lhe a vida.

Para terminar, o Dr. Fiquene ainda me deu muitos outros conselhos e depois nos dispensou. Dr. Clébis e eu saímos dali mais aliviados e, mesmo que os boatos ainda hoje perdurem, nunca mais houve qualquer problema entre mim e o João Menezes.

CAPÍTULO 33

Uma curta experiência como madeireiro

Algum tempo depois do falecimento de Otávio, apareceu em minha casa a viúva dele, oferecendo-me os 2 mil alqueires das matas que lhe pertenciam. A área ficava no município de Amarante.

Sempre que eu tinha dinheiro comprava o que me ofereciam. Não bastasse, se viessem contando maravilhas sobre determinado imóvel e me dessem prazo, também o adquiria. Devido a essa sofreguidão, muitas vezes eu não tinha o dinheiro da prestação assumida, no dia em que me vinham cobrar. Por algumas vezes defendi-me, dizendo que os culpados eram eles mesmos, porque haviam me garantido coisas que não eram verdadeiras. Isso, porém, nunca me criou constrangimento maior do que algum bate-boca.

Madeira fora um tipo de negócio que, apesar de envolver terra, eu nunca comercializara. Agora, com 2 mil alqueires de matas, eu teria que experimentar. Firmei contrato com João Salomão, da Mucuíba (ou João Lisboa – já nem posso precisar ), juntei algumas pessoas que sabiam trabalhar no ramo e comecei o serviço.

Sem experiência no ramo, nada funcionou. Cedi partes para extração em metros, outras por árvores, outras por alqueire..., enfim, transformei aquilo numa barafunda desorganizada, tanto que em poucos meses preferi abandonar tudo a acertar o emaranhado de contas.

Só não diria que perdi tudo porque, antes que isso acontecesse, fui ao Getat ou Incra (isso muda tanto que na época nem lembro mais por qual denominação o órgão era conhecido) e cedi 600 alqueires para que fossem doados aos verdadeiros sem-terras: homens humildes nascidos e criados no mato.

As terras foram distribuídas e hoje fiquei sabendo que centenas de pessoas vivem lá. Fundaram uma vila e a comunidade vive feliz. Diante desta notícia, chego a imaginar que não seria tão difícil se fazer a tão sonhada Reforma Agrária. Quase a metade das terras brasileiras ainda pertencem à Nação. No Pará e no Amazonas, se juntarmos as posses de alguns latifundiários, iremos ter uma área com a dimensão de Sergipe. Se de fato a Reforma Agrária distribuir as terras para pessoas que têm experiência em utilizá-la, não haverá necessidade de o governo se preocupar tanto em dar tratores, motosserras, energia, adubos, estradas... essas tantas coisas que baderneiros e agitadores infiltrados dizem ser indispensáveis. Se assim o fosse, como explicar o desenvolvimento de todas as nações que, como o Brasil, foram descobertas totalmente selvagens?

Pois bem, fiz a doação e nunca mais voltei lá. Nem eles, com certeza, sabem que o benefício de que hoje desfrutam foi facilitado por um “homem cruel, sanguinário... um bandido”.

Hoje, quando tento uma visão retrospectiva de minha vida, para buscar as razões que me transformaram num quase lendário homem mau, fico imaginando se não sou um produto do descaso social e político. Recordo o passado de minha família, onde tudo começou por causa da ineficiência policial em usar a lei e praticar a justiça.

No começo muito procurei esses órgãos, mas quando percebi que só o que não afetava o interesse deles em relação a seus protetores era levado em conta, então resolvi me tornar um deles. Passei a me defender como pude, criando amizades protetoras e entrando num labirinto praticamente sem saída.

Hoje percebo que não só Imperatriz, não só o Maranhão, não só o Brasil, não só o continente Americano..., mas o mundo todo é manipulado por gangues sem escrúpulos e sem religião verdadeira. Para o povo, só restam duas opções: crer nesta ou na outra vida. Se nesta, buscar registro, fazer parte e torcer para que alguém mais forte não convença o “chefe” de sua traição; se na outra, baixar a cabeça, sofrer todo tipo de discriminação, de abuso, de sofrimento e humilhação e pedir a Deus para não fraquejar. Não há meio-termo. É “ser ou não ser”, é acreditar ou não.

Eu tive a graça imerecida, a chance de ver os dois lados... e sobreviver. Escapei milagrosamente de emboscadas e traições e, no momento, enquanto o mundo me imagina vencido e humilhado, reergo-me das cinzas como a Fênix, para dizer ao mundo que jamais estive mais livre e feliz do que agora, porque encontrei a única razão de haver nascido: Jesus Cristo.

Comigo, agora, só o medo de perder a fé. Receio recair, ainda que Jesus tenha me visitado com todo ardor e carinho. Já não me importo se encontrar a morte ao dobrar a esquina. Já não olharei de lado, já não perguntarei por ninguém. Urge em mim a ansiedade de Deus.

Hoje só lamento que não tenham me dito antes que havia um caminho muito mais fácil para encontrar a maior e única riqueza deste mundo. Trilhei por outros, sofri, perdi noites amargurado..., mas sobrevivi. Imagino, Deus tem um plano para mim. Se assim for, meu Deus, aqui estou.

CAPÍTULO 34

O caso Saul Ribeiro de Assis

No dia 6 de novembro de 1984, Toinho, o motorista de uma caçamba que eu mantinha para as necessidades da fazenda, disse-me que lhe aparecera um amigo de nome Feitosa e que o mesmo precisava deixar um carro Mercedes-Benz em minha fazenda por alguns dias. O caminhão, por sua vez, era de um parente próximo do Feitosa. Estava carregado de arroz e, segundo as informações, precisava ser escondido, porque havia chegado a Imperatriz uma precatória judicial, impetrada por uma agência financiadora, solicitando a apreensão do veículo por estar com várias prestações atrasadas.

Como nunca neguei favor a ninguém, embora não estivesse aceitando o relato de Toinho, concordei, desde que ele chamasse o tal Feitosa para que me pudesse explicar melhor.

No horário marcado fui à minha fazenda e lá estavam o carro lotado de arroz e o Feitosa. Depois das apresentações, Feitosa me garantiu que o caminhão estava com muitas prestações atrasadas e que ele pretendia deixá-lo escondido até que providenciasse o dinheiro para a quitação. Uma das fontes em que pretendia arrecadar o dinheiro era a venda do arroz que ainda estava na carroceria. Como não podia expor o caminhão, me pediu a caçamba emprestada para levar o produto a ser vendido, no caso, o arroz. Prontamente dei ordens ao Toinho para que a usasse na entrega da carga.

Disse também ao Feitosa que, se o arroz fosse de boa qualidade, eu mesmo compraria 20 sacos. Ele me garantiu que sim e mandou que pusessem no meu paiol a quantidade pretendida por mim. Talvez por ter passado quase uma vida inteira lidando com gente má, fingida, mentirosa e treteira, senti que havia alguma coisa errada naquela história. Mas se, anteriormente, tendo culpa no cartório, eu não me importava, que dizer de agora, quando não tinha qualquer envolvimento? Disse-lhes apenas que não mentissem pra mim, porque eu não gostava desse tipo de comportamento.

À noite, ao retornar à minha casa, a primeira coisa que li no jornal é que um caminhão Mercedes-Benz havia sido roubado e que o dono estava desaparecido. Imediatamente procurei o pessoal e lhes inquiri sobre se o caminhão de que o jornal estava falando não era o que se encontrava em minhas terras. Muito desconfiados, quase gaguejando, eles disseram que não, que o único problema era o atraso no pagamento das prestações.

Mais desconfiado ainda, anotei a cor,  o número da placa e do chassi   que identificavam o veículo desaparecido e voltei para a  fazenda com o fito de conferir. Como se costuma dizer, não deu outra: aquele era o caminhão de que falava o jornal. Mandei que Toinho chamasse Feitosa e imediatamente relatei-lhes que já sabia de tudo e que exigia a retirada do caminhão e das 20 sacas de arroz de minhas terras. Em seguida, retornei a Imperatriz.

Minha fazenda ficava perto de Ribeirãozinho, a uns 20 quilômetros de Imperatriz. Como já saí com o sol posto, ao chegar à minha residência, encontrei o delegado da Polícia Federal me aguardando.

De 1978 a 1986, fiquei cadastrado como informante da Polícia Federal, por isso não estranhei a presença do delegado em minha casa. As visitas eram comuns e quase constantes, porque crimes aconteciam todos os dias e eu conhecia quase todos os movimentos sórdidos que se processavam na região.

Ainda que não houvesse qualquer laço de parentesco, o delegado possuía o mesmo nome com que me registraram: José Ribamar (Melo) Bonfim. Apenas o nome “Melo” não constava de meu registro. Enquanto pude lhe ser útil, ele nunca se importou com as denúncias que recaíam sobre mim, vindas da justiça comum. Ele sempre me dizia que aqueles meus tantos problemas não eram de sua alçada e que jamais eu me preocupasse com a Polícia Federal enquanto não criasse problemas nessa esfera.

Acontece que, com o desaparecimento misterioso de Saul Ribeiro e com a Polícia Militar demorando elucidar o acontecido, um dos filhos de Saul Ribeiro, Saul Júnior, requereu a Polícia Federal para ajudar nas investigações. Esse era o motivo da visita do delegado Bonfim à minha casa. Quando ele me disse a razão da visita, fui peremptório:

– Doutor, o caminhão já está localizado.

Ele tomou um susto, redargüindo:

– Onde está?

– Em minha fazenda.

– Você está brincando.

– Nunca falei tão sério.

– E por que não me disse antes?

– Primeiro, só agora sei que aquele é o caminhão procurado e, segundo, porque o senhor ainda não havia me pedido nada.

Boquiaberto, ele ouviu toda a história. Em seguida me convidou para irmos lá, o que foi feito prontamente. Mas, para nossa decepção, o caminhão já lá não se encontrava. Feitosa já o retirara, mesmo porque eu havia dado ordem para isso. Muito espertos, eles desapareceram com o veículo, porque sabiam que tudo viria rapidamente à tona.

– E agora? – perguntou-me o delegado, não menos desconfiado que eu.

Assim como eu me sentira ante Toinho e Feitosa, agora o delegado se sentia diante de mim: temeroso, desconfiado, percebendo alguma coisa errada por trás de tudo o que ouvira. Percebi sua insegurança e propus:

– Doutor, vamos chamar os dois aqui para termos uma conversa franca e objetiva. Sinto que o senhor não está acreditando no que estou dizendo.

O delegado coçou atrás da orelha, elevou as pálpebras enrugando a testa num claro sinal de dúvida e preocupação, observando:

– Não gostaria que você estivesse envolvido. Sempre lhe disse que jamais o incomodaria enquanto seus problemas não se referissem à minha seção.

– Não se preocupe, doutor. Faça o que tem a fazer, porque eu não devo nada.

Combinamos, então, um estratégia para prender toda a quadrilha, porque estava claro que ela não se resumia apenas ao Toinho e ao Feitosa. Combinamos, o delegado e eu, que iríamos nos oferecer para fazer parte da quadrilha e que, inclusive, já tínhamos mais dois caminhões escolhidos para serem roubados. Era uma estratégia que tinha tudo para dar certo, porque eles dificilmente deixariam de aceitar uma proteção desse quilate.

No entanto, Toinho e Feitosa juraram que não tinham nada com o roubo do caminhão e que o mesmo fora idealizado e levado a efeito pelo Baiano, Chico Coroinha e José Carlos (mais conhecido como “Gordo”).

– Bem – arrefeci –, se vocês não têm nada com o caso, terão que nos auxiliar na captura dos três. É preciso juntá-los para uma única redada, a fim de se evitar possíveis fugas. Sabem onde eles moram?

– Sabemos.

Combinamos que eles tomariam um táxi, apanhariam os três comparsas e diriam a eles que havia dois caminhões em Ribeirãozinho bastante favoráveis para serem roubados. Alegariam que ficaram sabendo por meio de dois amigos que pretendiam fazer parte do grupo (no caso, o delegado e eu) e estes afirmaram que os donos já haviam marcado encontro com duas mulheres de programa para aquela noite, aqui na cidade de Imperatriz, deixando os caminhões à mercê de nossos planos. Para que não desconfiem – instruímos –, o delegado e eu estaremos em frente ao Motel Dallas, onde vocês deverão parar e trocar de carro, alegando que o taxista não pode desconfiar de nada.

Tudo combinado, eles foram cumprir a parte deles, enquanto nós ficamos aguardando em frente ao Dallas. Eles alugaram o táxi do Valquimar Sales, vulgo Tamborete, apanharam os outros três e, às 22 horas, pararam ao lado de nossa camioneta. Desci e pedi que eles viessem falar comigo. Ainda que assustados, eles obedeceram. Então cochichei-lhes que iria pagar o táxi e mandá-lo voltar para evitar suspeitas e que daí para frente eu e o amigo que me acompanhava iríamos levá-los aos caminhões.

Muito desconfiados, eles subiram na camioneta. Em Ribeirãozinho, freei o carro e avisei que iríamos até minha fazenda porque ainda estava muito cedo para “o trabalho”. Sem ouvir a opinião deles, fui saindo.

Já na sede, pedi que descessem e entrassem. Quando todos estavam sentados, fingindo buscar um café, o delegado e eu fomos até a cozinha e voltamos com as armas em punho. Dispostos a tudo, lhes demos ordem de prisão, porque sabíamos da periculosidade da quadrilha. Sem nos distrairmos, ordenamos que Antônio dos Santos os desarmasse e os amarrasse com as cordas que já estavam prontas. Em seguida, virei-me para o delegado e disse com certo ar de satisfação, próprio de quem faz jus a um encargo que lhe foi confiado:

– Estão aí os homens, delegado. Pode levar todos os cinco.

Ele observou:

– Não. Se assim eu fizer, você vai se complicar.

– Como me complicar, se não tenho nada a ver com esse roubo?

– Você está se esquecendo de que Toinho é seu funcionário.

– Funcionário para trabalhar em minha fazenda e não para roubar carros.

– De qualquer forma, acho melhor a gente chamar o Saul Ribeiro de Assis Júnior, filho da vítima. A opinião dele é muito importante, já que teve a idéia de nos pedir ajuda no caso.

Concordei. Deixamos os cinco amarrados e viemos buscá-lo em Imperatriz. O delegado entrou no hotel e veio com ele. Quando retornamos, Júnior inquiriu sobre o paradeiro do caminhão e de seu pai. Eles disseram que o caminhão estava na estrada de Montes Altos e que seu pai estava morto, enterrado perto de Porto Franco. Quase em estado de choque, Júnior perguntou:

– Quem matou meu pai?

– Fui eu – respondeu friamente José Carlos, o Gordo.

Depois de um longo silêncio em que só Deus sabe o que se engendrou na cabeça de Júnior, ele acabou decidindo como se fosse juiz ou outra alta autoridade qualquer:

– Deixem amarrado apenas o Gordo. Os outros quatro podem ser soltos.

Aí eu contestei, afirmando que aquela atitude, sim, poderia me complicar. Sugeri entregar os quatro restantes à Polícia Civil, comprometendo-me retornar a Imperatriz trazendo o delegado Valber Dourado. Tanto o delegado da Polícia Federal, como o Júnior, foram contra. Ainda que de má vontade, acabei cedendo, mesmo porque tinha uma alta autoridade da Polícia Federal como testemunha de tudo quanto estava acontecendo. Não bastasse, o Júnior me garantiu que, ali, a partir daquele momento, dava o caso por encerrado e que logo no dia seguinte iria retirar a queixa.

A partir daí, eles deixaram o Toinho, Chico Coroinha e o Feitosa amarrados e seguiram com o Baiano e o Gordo para localizar o caminhão e o corpo de Saul. A noite escura, somada à tensão por que Gordo passava, impossibilitaram a localização do lugar, o que só foi acontecer depois que o dia amanheceu.

Imaginando que Júnior fosse levar José Carlos preso para Minas Gerais, com pena de sua família, eu disse que, até que ele saísse da prisão, a mulher e os filhos dele podiam morar numa das casas de minha fazenda. Acontece que Júnior, arquitetando um outro plano, resolveu soltar também o José Carlos, passando o mesmo a morar com a família em minha fazenda. Ainda que ninguém mais falasse sobre o assunto, eu sabia que aquilo não podia terminar daquela maneira. Sempre aprendi que reações assim são mais perigosas do que aqueles que fazem muito alarde e ameaças.

E mais uma vez eu não me enganara. Depois de dias de silêncio constrangedor, aproveitando minha ausência da fazenda, três homens que se identificaram como policiais prenderam o Gordo e desapareceram com ele. Com medo, Chico Coroinha evadiu-se também. Abandonou a família sem dizer para onde estaria indo.

Procurei o delegado Bonfim e perguntei se tinha sido gente dele que esteve na fazenda para prender o José Carlos. Ele me garantiu que não estava sabendo de nada. Também não demonstrou qualquer preocupação, o que me deixou mais aliviado. Se ele, envolvido no caso, diante do que havia acontecido, achava muito natural, só restava fazer o mesmo. Não contente, fui procurar o Assis Júnior, mas já me informaram que havia viajado de Imperatriz para Goiânia, onde, por sinal, sempre morou.

Com dois implicados desaparecidos, suas mulheres procuraram a Polícia Civil e, sem rodeios, acusaram-me de haver assassinado os seus maridos. Como Valber Dourado estivesse injuriado ante o desrespeito e falta de confiança do Júnior, que tirara a questão da Polícia Civil e a transferira para a Polícia Federal, e, ante a oportunidade de vingança que se lhe apresentava, enviou seus comandados à minha fazenda e trouxe preso o Antônio dos Santos, meu gerente. Em seguida mandou prender também o Toinho e o Feitosa.

Aí, num verdadeiro complô, meus inimigos pessoais – o delegado Valber Dourado, o promotor Antônio Diniz Raposo e o juiz Stélio Muniz – fizeram, sob pressão e tortura desumana, com que Antônio, Toinho e Feitosa confessassem que eu havia engendrado todos os crimes acontecidos no caso Saul Ribeiro. Ante a relutância dos três, a polícia punha fogo em jornais e queimava as pernas deles, ocasionando uma dor insuportável. Diante de tamanho desrespeito aos propalados Direitos Humanos, o papel da confissão escrita pelos meus inimigos acabou sendo assinado, sem que os torturados lessem o teor.

Quando soube da coação ilegal e desumana, procurei o advogado Tupinambá. Ele foi lá, constatou o estado deplorável dos implicados e me disse que havia possibilidade de soltá-los.

Soltos, Toinho foi para Campo Maior, no Piauí, e Feitosa para Timon, no Maranhão. Sem resistirem às torturas sofridas na prisão, extremamente debilitados e machucados, faleceram logo depois.

Com o papel assinado sob pressão, a Justiça decretou minha prisão preventiva, mas como nossa Constituição é um emaranhado de contradições, utilizando-se de uma delas, o Dr. Clébis revogou a preventiva, alegando eu ter moradia fixa, o que me dava direito de responder o processo em liberdade.

De toda minha “via crucis”, aprendi uma coisa: no Brasil, só fica na cadeia aquele que não tem condição de pagar um bom advogado. Nossa Constituição obedeceu à regra geral da existência de tudo, porque nada existe sem seu contrário. O belo só existe porque temos o feio como comparação, assim como só entendemos que uma coisa é comprida ante a visão das curtas. Aquilo que não apresenta contrário, não existe. Só que, no universo, no mundo e nas coisas, os contrários não se anulam, como acontece com as nossas leis. Estas prevêem que não se pode cometer crimes porque dão cadeia, mas se o advogado for bom, nenhum criminoso ficará atrás das grades.

Para que se entenda melhor, atente para a corrupção política, cujas conseqüências são mais danosas do que todos os crimes civis cometidos no dia-a-dia. Faz-se verdadeiro alarde quando um ou alguns homens matam 10 ou 15 pessoas aqui e acolá, e nada se faz contra uns poucos que matam milhões desviando o dinheiro que poderia lhes salvar as vidas se houvesse recursos para a Saúde. Sem contar que muitos daqueles que matam uma, duas ou 10 pessoas são também vítimas desorientadas, sem perspectivas de vida em conseqüência da ignorância que carregam por falta de instrução, igualmente ocasionada por desvios de verbas destinadas à Educação. Revistas, jornais, televisão e rádios denunciam essas coisas diariamente, não é invencionice minha.

Desses verdadeiros fratricidas e mesmo genocidas, quantos estão detrás das grades?

CAPÍTULO 35

A revolta de meus inimigos pessoais

Quando o mundo todo parecia ter desabado sobre mim, meus inimigos pessoais se juntaram para degustar os destroços. Valber Dourado, Antônio Diniz Raposo, Stélio Muniz e o então presidente da Ordem dos Advogados em Imperatriz, Dr. Oscar Gundin, lançaram um manifesto no jornal “O Progresso”, tachando-me de o pior dos seres humanos, o mais cruel e sanguinário pistoleiro do Maranhão, chefe de quadrilhas que roubavam e receptavam carros roubados – inclusive matando os motoristas –, traficante de drogas e contrabandista inveterado.

Defendi-me em outro jornal, dizendo que aquilo era uma baixaria, pois vinha assinada por inimigos pessoais, detentores do poder que estavam se aproveitando de um momento difícil de minha vida. Lembrei também que se tivessem provas contra tudo o de que me acusavam, que deveriam me prender, o que até então não fora possível. Afirmei ainda que Diniz era torturador e que a prova mais incontestável se encontrava dentro da própria casa, nas marcas de pancadas que sua esposa carregava no corpo.

Imediatamente procurei meu advogado e amigo Dr. José Clébis e pedi para que procurasse a brecha da lei que me dava o direito de afastar Diniz do processo, por ser meu inimigo pessoal mais ferrenho. Dr. Clébis, que só não impediu a crucificação de Cristo porque não viveu naquele tempo, logo o afastou. Foi nomeado o Dr. Luís Gomes, que se dizia meu amigo.

Logo descobri que tinha caído numa armadilha ainda pior, porque, pelo menos, o Diniz não vivia me pedindo dinheiro para viajar para São Luís, nem uísque importado. Não bastasse, Luís Gomes era hipócrita, porque dizia uma coisa na minha presença e fazia outra por trás. Foi assim que mandou prender alguns de meus funcionários que nada sabiam do problema e começou a torturá-los também, exigindo que assinassem depoimentos confirmando que viajavam para o Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades brasileiras com o único objetivo de receptar carros roubados para mim. Novamente, com jornais queimando sob suas pernas, eles não resistiram, assinando tudo o que lhe foi apresentado, sem ler uma frase do que estava escrito.

Sobre Antônio Diniz Raposo, depois de muitas perseguições e calúnias, no dia 4 de outubro de 1985, revidei, escrevendo a ‘Carta aberta para o conhecimento do público em geral e a quem interessar possa’, carta essa que foi publicada no “Jornal de Brasília” no dia 8 de outubro do mesmo ano, com o seguinte teor:

“Face a leviandade, a falta de caráter, a indignidade e a covardia de um homem que, infelizmente, ocupa, não se sabe como, o cargo honrado e imaculado de Promotor de Justiça em Imperatriz, sinto-me no dever e na obrigação de defender-me, pelo mesmo caminho, dos insultos e das inverdades à minha pessoa, dirigidos pelo covarde Antônio Diniz Raposo, que, desprovido de qualquer meio juridicamente válido, às escondidas, sorrateira e covardemente, publicou no jornal “O Imparcial”, de 30 de setembro de 1985, estórias criadas exclusivamente em sua mente ferina e covarde, de que sou, em Imperatriz, o chefe do crime organizado.

“Existe uma ditado que diz: “Quem tem telhado de vidro, não deve jogar pedras no telhado alheio”. Se para Antônio Diniz Raposo sou o chefão do crime organizado em Imperatriz, para mim, ele é o chefão dos criminosos que, às escondidas, camufladamente, torturam mulheres indefesas, deixando algumas loucas e outras internadas em hospitais desta cidade e, posteriormente, tratadas em São Luís.

“A sociedade de Imperatriz não foi feliz quando acolheu em seu seio um elemento pernicioso como é o Antônio Diniz Raposo, que na sua primeira noite em Imperatriz, na zona do baixo meretrício, conhecida por Farra Velha, bêbado e talvez torturando mulheres indefesas – como é de seu feitio, apanhou de um miliciano que o fez correr e saltar o muro da Delegacia de Polícia do 1º Distrito, instalada nas imediações da Farra Velha.

“Moro em Imperatriz há vários anos, ao longo dos quais vivo de meus recursos próprios de agricultor e criador de gado; vivo do meu trabalho, do meu suor que acredito honrado. Não sou bandido de gabinete que tenta esconder suas atividades criminosas se autopromovendo, prevalecendo-se do cargo que ocupa, por meio da Imprensa.

“Se procurei este caminho para minha primeira defesa foi porque este foi o procurado pelo meu inimigo gratuito que não conheço.

Imperatriz, 04/10/1985.

José Ribamar Bonfim”

Bem sei que, na “troca de insultos” entre inimigos pessoais, muita razão e muitas verdades acabam dando lugar à irracionalidade. Tanto as palavras que Diniz disse de mim como minha defesa a seguir, por certo estão prejudicadas pela falta de simpatia recíproca, mas valho-me de uma extensa reportagem editada em “O Progresso”, datada de 24/12/87, para dizer que, possivelmente, eu estava bem mais com a verdade do que o Sr. Diniz.

A reportagem ocupa uma página inteira e seria enfadonho transcrevê-la, mas, quem tiver a curiosidade, e só pesquisar. Entre tantas insatisfações declaradas pela população em razão de medidas consideradas arbitrárias por parte de Diniz, ainda ficaram registradas graves denúncias (com testemunhas) de torturas. É conferir para crer.

CAPÍTULO 36

A exumação do Gordo

Com a prisão de meus funcionários, acabaram descobrindo onde se encontrava o cadáver do Gordo. Não que meus funcionários tivessem participado, mas simplesmente porque, no dia do assassinato, Antônio dos Santos, que gerenciava minhas fazendas, tinha trazido seis peões de outra fazenda para semear capim na fazenda de cá. Eles estavam a uns 400 metros da estrada quando viram que um carro parou e que vultos, possivelmente quatro, adentraram na orla. Depois ouviram tiros e quase duas horas depois, perceberam que três pessoas voltavam, tomavam o carro e se retiravam do lugar.

Na hora do almoço, passando pelo local, eles viram vestígios estranhos e adentraram pela picada, dando com sangue e com uma cova recente. Logo me procuraram, alertando-me para o fato e dizendo que era grande a chance de ali ter sido assassinado e enterrado um homem. Perguntei ao Antônio se havia reconhecido alguém, ao que ele disse que a distância era muita e que apenas divisou vultos. Já metido até a cabeça com tantos problemas, aconselhei-o a esquecer o que viu, porque mais cedo ou mais tarde a gente ficaria sabendo do que se tratava. O importante era não dever, porque por mais evidências que existam, quando há interesse, a verdade sempre prevalece.

Por estranha coincidência, logo a polícia apareceu e prendeu Antônio, exigindo que ele contasse onde eu havia enterrado o corpo do Gordo. Para qualquer pessoa com o mínimo de inteligência, não é difícil deduzir que aquela atitude era por demais suspeita. Como souberam tão depressa do assassinato e por que quem o matou o fez exatamente na entrada de minha fazenda? Ora, eu não seria tão imbecil ao ponto de enterrar alguém dentro de minhas terras, quando há tantos lugares ermos e distantes para fazê-lo. Além do mais, fui eu quem deu a ordem para que Antônio semeasse capim ali naquela parte e não iria assassinar um homem indefeso, certamente algemado ou amarrado, sem qualquer chance de defesa, ali, onde muitos trabalhadores seriam testemunhas.

Concomitantemente, a mulher de Chico Coroinha, ante o sumiço do marido, aproveitou a oportunidade para, sem qualquer prova, denunciar-me, também, pela morte de seu esposo. Mas acontece que Chico Coroinha fugiu com medo de represálias e, segundo se sabe, está vivo e bem vivo em alguma parte da Baixada Maranhense.

Nesse tempo, a polícia cometeu toda sorte de arbitrariedade. De minha fazenda, só não prenderam as crianças. Além de levarem meu filho Hílton, saquearam a casa, levando gêneros alimentícios e até os Cz$6.800,00 que haviam sido retirados para pagamento dos funcionários. Já que não me devolveram nada, posso assegurar que fui vítima de roubo. Mas que valor terá a palavra de um bandido, diante das afirmativas de nossos ilibados chefes da Polícia e da Justiça?

Agora, estou aqui, preso por crimes que arranjaram pra mim. Não tem importância: fiz muitos outros que ninguém menciona e que, certamente, não teriam um preço menor. Fui agressivo, pratiquei a justiça acima da bondade, exigi sempre o que era meu sem nunca atentar para as justificativas e as dificuldades dos outros, enfrentei os maiores perigos por que um homem pode passar, apenas para manter minha palavra e ser coerente com a amizade que apregoava; fui ganancioso, fiz do dinheiro meu deus pagão, nunca tratei meu corpo como um templo de Deus, fui vingativo com quem feriu meus parentes... fiz muitas coisas erradas, muitas mesmo, pelas quais é grande minha dívida diante da sociedade e de Deus.

E vejam como é a vida: estou pagando exatamente por coisas que não fiz, por crimes que não cometi. Como castigo por minhas tantas fraquezas, hoje estou preso, esquecido dos pretensos amigos e até mesmo da maior parte de meus familiares.

Mas, se imaginam que digo estas coisas com amargura ou ódio, com certeza estarão se enganando. Só agora eu começo a entender porque Deus me livrou de tantas emboscadas e tocaias. Antes, eu achava que era coincidência, porque um homem que deitava e levantava como um irracional, sem jamais fazer o sinal da cruz nem lembrar da existência de Deus, não merecia qualquer proteção dos céus. Mas eu estava enganado, muito enganado.

Hoje sei que é verdade que, para Deus, somos todos iguais e que há mesmo mais alegria por uma ovelha que estava perdida e foi encontrada, do que por todo o rebanho que está a salvo. Sinto isto pela grande paz que ora me invade toda a alma, e pelo perdão sincero que deixo a todos aqueles que me perseguiram com mentiras, calúnias e falsos testemunhos, que tentaram me tirar a vida, que me usaram, que me forçaram a cometer crimes para que seus objetivos espúrios e mesquinhos fossem alcançados.

Não guardo rancor de ninguém. Tudo virou passado. Desejo a todos que têm a alma nodoada de crimes e sortilégios que Jesus Cristo se compadeça deles como se compadeceu de mim. Sem a graça de Deus, sem a consciência tranqüila, sem praticar a caridade, ninguém conseguirá saber o que de fato é riqueza, paz e poder.

CAPITULO 37

A morte do padre Josimo

No dia 10 de maio de 1986, o vigário da paróquia de São Sebastião, da diocese de Tocantinópolis, padre Josimo Moraes Tavares, foi assassinado pelas costas aqui em Imperatriz. Ele foi alvejado enquanto subia as escadas do prédio de propriedade da diocese de Carolina (hoje, Diocese de Imperatriz), que fica à esquerda e quase no fim da Avenida Dorgival Pinheiro de Sousa. Era um velha questão que havia pela posse das férteis e belas terras do Bico do Papagaio. O padre lutava a favor dos sem-terras e isto desagradava aos latifundiários e até mesmo aos proprietários de modestas áreas invadidas. Considerado santos por alguns e agitador por outros, o padre acabou experimentando a crueza da ganância e do egoísmo.

Após a execução – conforme testemunhas –, o pistoleiro fugiu calmamente, sem se importar com dezenas de pessoas que o fitavam estarrecidas.

No outro dia, não se falava outra coisa a não ser que eu havia atacado mais uma vez. Nesse tempo, Davi Alves Silva ainda não dividia comigo a culpa por tudo de ruim que acontecia no Maranhão. Ainda que muita gente tenha visto o pistoleiro entrar calmamente no carro e sair como se viesse de um sorvete da Zorzo, ainda assim houve aqueles que afirmaram que eu mesmo havia cometido o crime. Às vezes fico pensando como é fértil e maldosa a mente de muita gente!

Eu que, por ter residência fixa, respondia em liberdade a três processos, agora via ameaçada minha liberdade condicional ante a maldade de caluniadores e fofoqueiros.

O jornal “O Liberal”, de Belém (PA), publicou uma nota afirmando que eu e meu irmão Quincas éramos os mandantes. A revista “Veja”, com circulação no exterior, não deixou por menos, opinando conforme os boatos que corriam segundo minha triste fama.

Para que se tenha uma idéia ainda mais acurada, um imperatrizense que assistia à Copa do Mundo, no México, trouxe de lá um jornal que também comentava a morte do padre, apontando-me como suspeito.

Eu estava tão visado que, por ocasião da visita do presidente José Sarney a Imperatriz, sorrateiramente fizeram um dossiê volumoso, no qual estavam relatados, aumentados e distorcidos todos os crimes de que eu era acusado. E para maior certeza, fizeram questão de entregar nas mãos do presidente, a fim de que não ficasse dúvida alguma sobre o recebimento.

E nosso ilustre Senador, esquecendo-se dos favores prestados pelo meu pai, no tempo em que disputou com Newton Belo o governo do Estado, expediu ordens ao delegado para que me prendesse.

Naquele tempo, Newton Belo era considerado mau caráter, pistoleiro e adjetivos que o valham. Por isso, nos municípios em que ele dizia serem seus redutos eleitorais, como Presidente Dutra, São Domingos e outras mais, Sarney só podia fazer comício diante da proteção de meu pai e seus homens de confiança, tachados por todos de capangas. Meu pai subia com Sarney e dizia em alto e bom som: “Pronto, amigo, o couro da onça já está tirado. Pode falar.”

Sarney, no entanto, esqueceu-se ou se fez de esquecido, mesmo porque ainda devem estar-lhe na lembrança os velhos tempos em que meu pai lhe garantia a presença nos palanques hostis de muitas regiões maranhenses.

Da cadeia, lembrança da “gratidão” de Sarney para com meu pai, só saí quando o saudoso amigo Caetano Costa, amigo de infância do “nobre político”, intercedeu por mim.

Quanto às acusações que me imputavam pela morte do padre Josimo, somente quando prenderam o pistoleiro Geraldo Rodrigues da Costa e obtiveram dele a confissão de que praticara o crime a mando dos irmãos Osmar e Guiomar Teodoro da Silva é que me deixaram em paz.

Tivessem os mandantes eliminado Geraldo como queima de arquivo, certamente mais alguns anos seriam acrescidos à minha sentença por mais esse crime.

CAPÍTULO 38

Agora na Política

Nos tantos anos de meus percalços, nada mais fizeram meus pretensos amigos do que me usar descaradamente. Sou um homem rude e sem instrução e, talvez por isso, sempre me defendi como se defende um ser vivo levado pelo instinto.

Só me desejam mais castigos aqueles que desconhecem o outro lado da moeda: o lado cruel da luta pela sobrevivência num mundo hostil. Manter a vida para mim era o mesmo que um agricultor derrubar a mata sem machado. Nunca tive estudos, nunca pude me defender e, quando precisava que alguém o fizesse por mim, sempre era explorado criminosamente. Teve algumas exceções sim, mas, de tão raras, desconsideradas.

Se alguém me ajudasse hoje, amanhã me pedia um “favor” que dinheiro algum pagaria: arriscar a vida. Assim foi no mundo dos negócios e assim seria agora, quando me convenceram de que eu tinha condição de eleger-me deputado estadual. A idéia era usar-me como “curral de votos”, ou seja, fazer com que aquelas pessoas que de alguma forma confiavam ou precisavam de mim votassem no partido que, na hora exata, iria vetar minha candidatura para favorecer pessoas da laia deles.

Tudo começou quando o ex-governador João Castelo e o deputado estadual Davi Alves Silva (que estava concorrendo a Deputado Federal) convidaram-me para acompanhá-los a São Luís, onde iriam consultar a cúpula do partido (PDS), para saber se havia possibilidade de me lançarem como candidato a uma vaga na Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão.

Convenceram-me de que sim, ainda que a resposta final tivesse que ser dada na convenção do partido, a ser realizada uns dois meses depois. Voltei e comecei a trabalhar. Gastei tempo e dinheiro, assumi dívidas e, quando veio a convenção, deixaram-me de lado, porque havia o inconveniente de muitos processos, mais as constantes denúncias que ora se faziam a respeito de tráfico de drogas, receptação de carros roubados, a morte de Saul Ribeiro e muitas coisas mais.

Dessas coisas há muitos meses os jornais estavam fartos. Iludiram-me, insinuando que um homem com tantos problemas como eu só encontraria a solução ingressando na política. E, mais uma vez, acreditei.

Não discuto o conselho insinuado, porque sua verdade se prova todos os dias ante as denúncias infrutíferas que recaem sobre grande parte de nossos políticos e nada lhes acontece, mas seria mentiroso se negasse que imaginei tirar duras satisfações pela falsidade que usaram para comigo.

O que mais me doeu foi saber que tudo fora tramado fria e calculadamente e que as fofocas que a mídia explorava diuturnamente eram pagas pelos mesmos que me convidaram a entrar na “máfia”. Para enfatizar ainda mais a sórdida trama, Davi Alves Silva, aproveitando-se do meu trabalho e do meu dinheiro, colocou no meu lugar seu irmão Daniel Silva, que não tinha e não tem qualquer trabalho ou propensão à vida pública... mas ainda assim foi eleito.

Como vingança, fiz o que pude pelos adversários de “meus amigos”, apoiando-os em tudo o que foi possível. Raimundo Cabeludo perdeu, mas João Castelo experimentou o gosto da traição. Melhor que nada!

No dia 8 de julho de 1986, o “Jornal de Imperatriz” estampou a seguinte manchete: “CUIDADO COM ESSE ANDOR QUE O SANTO É DE BARRO”. Ao entrevistador e jornalista Coló Filho, desabafei:

“Visivelmente agastado com a declaração do senador João Castelo na parte que diz ‘eu nem conheço José Bonfim’, digo que o Senador só não me conhece agora, depois que estabeleci a ponte entre ele e Davi Alves Silva. Depois da ponte feita, eles estão me desconhecendo, mas é bom andar devagar com o andor porque o santo é de barro e basta uma pedra no caminho para atrapalhar tudo.

“Castelo teve uma ‘briguinha de amor’ com Davi Alves Silva e me pediu para reatar-lhes a amizade. Ao falar com Davi ele me respondeu que não queria nada com Castelo porque era um homem covarde que estava traindo os amigos em troca de um ministério. Então falei com Castelo da conversa que tive com Davi e ele reforçou o pedido para que eu continuasse tentando a aproximação. Recorri ao advogado Clébis que, mais uma vez, levou a bom termo a sua incumbência.

“Depois de reatada a amizade, os dois passaram a me ignorar, dando uma demonstração inequívoca de hipocrisia”.

Diante de toda confusão, mais uma vez o jornalista Jurivê de Macedo não dispensou seu velho humor sarcástico: “Agora o cão pulou mesmo pra fora do inferno pra vir atentar em Imperatriz. Bonfim belisca João Casleto e Davi; João Castelo diz que nem conhece Zé Bonfim e este vem na fumaça e diz que agora João Castelo não o conhece porque já o usou como ponte e, pra completar, vem Davi dizendo em microfone, pra cidade inteira ouvir, que ‘naquele momento, Bonfim não agiu como homem’.

“E como diz aquele (e) leitor, se o velho Vitorino Freire fosse ainda vivo estava na hora dele lembrar o seu ensinamento: – vai chegar a hora em que a vaca não vai mais conhecer o bezerro. Chegou!”

CAPÍTULO 39

O uso indevido de minha fama

Já no final de 1986, eu praticamente vivia entre Imperatriz e Serra Pelada. Respondia a alguns processos em liberdade e por isso não podia ausentar-me por muito tempo. Com o passar dos dias, ao invés de minha fama de mau diminuir, aumentava. Vagabundos espertos usavam meu nome e se vangloriavam de conseguir seus intentos ou de ganharem suas questões com a simples mentira de dizerem ser parentes ou de estar, a meu mando, fazendo o que faziam de errado.

José Florentino Castro Alves, mais conhecido como Barbudinho, foi o que mais usou e abusou dessa artimanha. Mas não era só ele. Diversas pessoas ao baterem seus carros, ao receberem cheques sem fundos, ao se negarem quitar uma dívida..., não tinham qualquer escrúpulo de mencionar estreita ligação de negócios ou parentesco comigo, com o fito de intimidarem quem os ouviam ou contestavam.

Com certeza, ainda que isto não represente qualquer glória para mim, as pessoas me transformaram num mito, em algo irreal, cuja fama fazia milagres. Era possível mesmo que eu pudesse levar o que bem entendesse da maioria das pessoas, diante da única justificativa de me chamar José Bonfim.

Em novembro de 1986 resolvi me candidatar à presidência da cooperativa de Serra Pelada. Ainda que não tenha mencionado, este garimpo também tinha lá suas encrencas, porque jamais os conflitos andam desatrelados da ganância e do dinheiro. No tempo de Sebastião Curió muitas mortes ali aconteceram sem que ninguém descobrisse o mandante ou o assassino. E era em mais essa briga que eu me propunha entrar.

A eleição ocorreria no dia 25 de novembro, mas 10 dias antes aconteceriam, também, as eleições em todo o País. Por isso, viajei para Imperatriz a fim de cumprir minhas obrigações de cidadão. No dia 18, eu ainda tomava meu desjejum quando o telefone tocou. Era o delegado da Polícia Federal de Imperatriz, Raimundo Cutrim. Disse que precisava falar-me e, ao ser perguntado sobre o assunto, adiantou-me que seria sobre o assassinato de Saul Ribeiro. No caso Saul eu era suspeito e testemunha de José Ribamar Melo Bonfim, delegado da Polícia Federal de São Luís, também implicado no assassinato.

Às 10 horas do dia 18, quando cheguei para atender o chamado de Cutrim, fui logo sendo algemado pela Polícia Federal da Bahia, que, traiçoeiramente, me aguardava. Acusando-me de receptador de carros roubados de seu Estado, o delegado me levou para o o Batalhão de Infantaria e Selva e logo em seguida para São Luís. No outro dia fui conduzido para Salvador. Além de eu nunca ter andado pela Bahia, eles não tinham qualquer prova do que me acusavam.

Mas a trama não tinha como objetivo provar nada, apenas prejudicar meus planos quanto a Serra Pelada e esclarecer o sumiço do processo que, em 1975, misteriosamente escafedeu-se de cima da mesa de um juiz criminal. Cutrim precisava embasar-se em minha índole perversa para reativar o processo desaparecido e minha prisão, pela polícia baiana, também como ladrão de carros, dava-lhe a sustentação de que necessitava. Que fez Cutrim? Acompanhado de peritos, voltou à Fazenda Cipó Cortado e começou a desenterrar os cadáveres. Acharam muitos, mesmo porque, na luta pela posse das terras, dificilmente corria uma semana sem que algum concorrente não fosse afastado de suas pretensões.

Todos os cadáveres encontrados – alguns até divididos em dois – foram “oferecidos” como troféus de chacinas cruéis. Ainda me recordo quando o delegado apresentou uma testemunha que garantiu, na minha presença, ser eu o autor da morte do irmão dele... irmão que, na hora de dizer o nome, ele não soube.

O delegado da Polícia Federal, Raimundo Cutrim, antes de ser empossado no cargo de Secretário de Segurança do Maranhão, esteve muitas vezes comigo em Roraima. Ele passava dias e semanas na fazenda de meu irmão Quincas e nós nunca lhe negamos as informações solicitadas sobre pistas clandestinas de aviões, seu principal objetivo naquele tempo. Conhecia minha vida e meu paradeiro, mas nunca falou em me prender. Agora, porque precisava mostrar serviço, achou de fazê-lo em cima de mim. No entanto, o caso do assassinato do delegado Stênio Mendonça, que seria uma ótima oportunidade para provar sua competência, continua insolúvel, inclusive com execuções sumárias de envolvidos pela própria polícia que ele comanda.

Mas Cutrim não estava só na luta obcecada de perseguir-me. O padre Vítor Asselin, um sacerdote escritor lá de São Luís, além de artigos sucessivos abordando o problema de grilagens, lançou um livro com o nome “Grilagem, corrupção e violência em terras do Carajás”, no qual eu era o protagonista de suas maldosas insinuações. Segundo Asselin, eu havia participado de uma briga em Barra do Corda, em 1937... exatamente 10 anos antes de meu nascimento. Pelo menos o padre teve a coragem de juntar a mim muitos “políticos e homens ilustres”, por sinal, os principais responsáveis por todas as desgraças acontecidas na região. Nessa parte, sou testemunha, ele foi feliz.

Deixaram-me atrás das grades de 18 de novembro de 1986 a 24 de janeiro de 1988, sem nunca me levarem a julgamento. Em 1987, numa devassa feita na região, o delegado Romeu Tuma, em alto e bom som, garantiu, aos que lhe ouviam no aeroporto de Imperatriz, que eu não tinha qualquer ligação com o tráfico de drogas. Ainda que tivesse dito a verdade, em nada mudou minha triste situação. Cansado de esperar, certo de que apodreceria em Pedrinhas sem ser julgado, resolvi, mais uma vez, apelar para o meu senso de justiça.

CAPÍTULO 40

A fuga de Pedrinhas

Péricles, meu companheiro de cela, com a ajuda do padrasto dele, mais a imprescindível proteção do saudoso Elias Figueiredo – empresário de São Luís –, arquitetamos um plano de fuga. Ainda que João Castelo tivesse afirmado que minha fuga se deveu à interferência de José Sarney e Edison Lobão, que teriam “comprado” a polícia, devo afirmar que ninguém, nem da polícia nem da política, teve qualquer envolvimento em minha fuga.

Foi um plano arriscado que executamos sozinhos e que acabou dando certo, talvez pela ousadia com que foi praticado. Acho mesmo que meus planos sempre funcionaram por causa da determinação com que os executei. Eu sempre agia tendo a certeza de que iria dar certo. Naquele dia, ou eu fugiria ou estaria preso por toda a eternidade, numa cova fria de algum cemitério.

Foi no dia 24 de janeiro de 1988, depois da visita permitida aos domingos, quando o relógio já assinalava 16 horas. Todos os detentos estavam à vontade, andando pelo pátio ou conversando com seus familiares e amigos. Mais de 60 policiais mantinham a guarda, certos de que ninguém ousaria fugir dali com tão grande número deles. Confiando nisto, deixaram a porta da frente apenas encostada. Eles sempre faziam isso, o que despertou em mim a possibilidade da fuga.

Lá fora estava esperando um Passat novo, cheio de armas pesadas, cedido pelo Elias. Na hora certa, meu filho Hílton, Péricles, João Pedro, a viúva Porcina e eu, como quem não queria nada, abrimos a porta da saída e, caminhando normalmente, ante os olhares estarrecidos de toda guarnição, entramos no Passat e ligamos o motor. Nem aceleramos forte. Saímos como saíam alguns dos parentes que vinham visitar amigos presos.

Mesmo na estrada, não corremos além do normal. Ninguém nos perseguiu. Eu mesmo achei estranho, porque, com certeza, minutos depois todo o presídio já estava sabendo da fuga e, mesmo assim, nenhuma perseguição.

Talvez por isso surgiu o forte boato de que políticos haviam ordenado que nos deixassem sair normalmente. Contudo, se o fizeram, foi pura coincidência, porque, pelo menos eu, nunca fiquei sabendo de nada.

Atravessamos no “ferryboat” e fomos parar na fazenda que o padrasto do Péricles possuía em Pinheiros. Ali descansamos um pouco e decidimos que cada um deveria tratar de si. Meu filho Hílton e eu resolvemos ir para Bacabal, a viúva Porcina foi para Marabá, enquanto João Pedro e Péricles permaneceram na fazenda. Hílton e eu passamos poucas horas em Bacabal, porque sabíamos que ali seria um dos primeiros lugares em que a polícia suspeitaria de nossa estada. Resolvemos nos esconder no Arame, onde permanecemos por quase um mês. Baixada a poeira, deixei o Hílton lá e vim para Imperatriz, chegando em minha casa no dia 19 de março.

Aqui só fiquei o tempo necessário para embarcar no avião particular de meu irmão Quincas, que já me esperava no aeroporto para levar-me para Roraima. Foi um vôo quase direto, com escala apenas em Santarém, para abastecimento. E, exatamente às 14 horas do mesmo dia, o mano Quincas e eu descemos no aeroporto de Boa Vista.

Jamais, enquanto viver, irei esquecer o que o Quincas fez por mim. Durante dois anos me sustentou fisicamente e suportou minha depressão, ocasionada pelas tensões que eu vivia. Não resistindo às seguidas e fortes pressões da vida atribulada que levava, comecei a ficar neurótico, enxergando fantasmas e vendo perseguidores em tudo e em todos.

Vivia trancado dentro de meu quarto, encolhido de medo, sempre com as armas na mão. Havia saído da cadeia e agora me via prisioneiro de mim mesmo. Nunca me arrependi tanto de haver fugido da penitenciária!

Se alguém batia palmas na porta da casa de meu irmão, meu corpo tremia todo. Sem perceber, eu engatilhava as armas e me acocorava num canto, pronto para disparar em quem abrisse a porta. Nas horas de calma, meu irmão conversava comigo e tentava tirar-me daquela crise depressiva. Como uma criança desamparada e desesperada, às vezes eu chorava e então meu irmão, triste e cabisbaixo, ia saindo desolado, sem saber que iniciativa tomar. Acho que Quincas saía para também chorar onde eu não via. Com certeza, ele achava que eu havia enlouquecido.

Por causa de tudo isso, se a mim for dado o ensejo de aconselhar, eu diria a todos os detentos para que não fujam, ainda que a justiça seja lenta e preguiçosa. Não há nada que justifique não se sujeitar à lei, ainda que injusta. De todos os caminhos, o melhor ainda é aguardar até que o julgamento aconteça e depois quitar a dívida para com a sociedade, com paciência e bom comportamento. Tudo passa nesta vida, até os longos dias de uma prisão.

Aquela pré-loucura durou quase um ano, quando, já me sentindo um pouco melhor, ajudado sempre pelo meu irmão, resolvi tentar a sorte nos garimpos de lá. Só que eu ainda não estava completamente curado e tinha medo de sair de casa. Por isso, contratei trabalhadores – que me roubaram, dando ainda um prejuízo maior a meu irmão.

Não bastassem tantas provações, em 1992 meu irmão precisou se mudar para Imperatriz, deixando-me sozinho com meus problemas. Ele estava doente, tanto que logo depois veio a falecer vítima de derrame cerebral.

Assim, o que estava ruim, ficou pior. Saí da situação de pobre depressivo e entrei na de miserável famélico: não tinha nem o que comer. Em última instância, vendi a casa que meu irmão havia me dado, comprei duas máquinas e as enviei novamente para o garimpo. Para minha desdita, a Polícia Federal foi lá e ateou fogo em tudo, alegando que o garimpo era ilegal e feria a lei de proteção à natureza. Novamente, Cutrim estava no meio. Não me prendia nem permitia que eu me reerguesse. Num sadismo doentio ele parecia preferir punir-me com a miséria absoluta. E conseguiu.

Literalmente, cheguei ao fundo do poço. Não tinha casa para morar nem com o que me alimentar. Então passei a capinar quintais, varrer frente de casas, a praticar todo e qualquer tipo de trabalho, aparentemente humilhante, a troco de um prato de comida. Tenho certeza que, se Deus computou meu sofrimento naqueles dias, muito de meus pecados já estão perdoados. Nos estertores do desespero, comecei a ajuntar pedaços de madeira jogados fora para com eles construir uma alcova para morar.

E o medo não se desgarrava. Eu era um foragido da justiça, um homem sempre tenso e inseguro. Não dormia direito, não havia paz na minha alma. Tenho certeza que já tive uma boa experiência do que seja o inferno.

Não tinha hora para dormir. Meu organismo se refazia dessa necessidade aleatoriamente. Eram 24 horas intercaladas de cochilos interrompidos por pesadelos terríveis. Exatamente por isso, resolvi procurar um emprego como vigia noturno, exercendo essa profissão até julho de 1994, quando um candidato a deputado federal me convidou para ajudá-lo na campanha.

Desse trabalho sobraram-me 250 reais. Com esse dinheiro, aproveitando a oferta de lotes e material feitos pelo governo de Roraima, empreitei o levante das paredes a um pedreiro que, para não descaracterizar a provação a que eu estava sendo submetido, desapareceu com o dinheiro sem assentar um único tijolo.

Então troquei o terreno e o material por um outro que já tinha um barraco de madeira e pra lá fui morar.

CAPÍTULO 41

Parecia não haver outro caminho

Em 1996, apesar de maltrapilho numa terra distante, minha fama daqui chegou até lá. Melhores farejadores que cães privilegiados, logo políticos e fazendeiros encrencados me descobriram para seus serviços. E, novamente diante de tantas dificuldades, voltei a usar minha propalada e pretensa coragem para ganhar algum dinheiro.

O Banco do Brasil havia penhorado uma fazenda e agora precisava recebê-la como pagamento da dívida não quitada. Walter Suíço, fiel depositário, acompanhado de oficiais de justiça, pediu “minha companhia” para receber as terras. O dinheiro era bom e não tive escolha. Fui.

Não houve brigas, apenas ameaças. Como diz o velho ditado, “morto por morto” aquilo estava de bom tamanho. Permaneci na fazenda durante três meses, ao fim dos quais recebi meu dinheiro e, mais animado, recomecei a vida mais uma vez.

Entrei na compra e venda de gado e a cada dia as coisas foram melhorando. Assim como a miséria atrai mais miséria, também seu contrário é verdadeiro. Com as coisas andando bem, fui procurado pelo Dr. Alci da Rocha, oferecendo-me um ótimo trabalho como segurança do Dr. Belém. Disse-lhe que não poderia acompanhá-lo as 24 horas do dia, mas que o faria em todos os momentos mais necessários, como transporte de dinheiro e pagamento de funcionários. Esse emprego não deu certo porque me pareceu que eles se arrependeram do preço que haviam combinado comigo.

Voltei para meu negócio de compra e venda de gado. Logo depois, outro advogado novamente me convida para ser segurança do Dr. Belém. Como já dera errado na primeira tentativa, desconsiderei o convite. Alguns dias depois, estando eu em Manaus, recebi um telefonema do Dr. Domingos, insistindo para que eu falasse com o Dr. Belém, porque ele tinha uma ótima proposta a me fazer.

Sempre demonstrando desinteresse, mas não querendo ser grosseiro, combinei que, no dia seguinte, iria falar com ele pessoalmente, quando estaria de volta a Boa Vista. Assim prometi, assim fiz.

Dr. Belém me disse que a área dele havia sido invadida por oito famílias de posseiros muito atrevidos, tanto que até a polícia já havia sido escorraçada de lá. Respondi que nada disso me intimidava, porque já havia desenvolvido um bom jogo de cintura nessas questões. Importava-me, sim, o quanto ele iria me pagar pelo serviço. Ele me ofereceu 10 mil reais, eu pedi 15 e acertamos por 13, ficando comigo a responsabilidade de entregar-lhe as terras “limpas” em 90 dias. Combinamos ainda que eu teria o direito de “pegar” as empreitadas que ele fosse fazer nas terras, posteriormente.

Como quem não quer nada, no outro dia fui até o local, dizendo que pretendia, também, adquirir um lote para tentar a vida na lavoura. Ainda que os homens não quisessem nem ouvir o nome Belém, até me ajudaram a conseguir um pedacinho de terra, bem na divisa com as terras deles. Era tudo o que eu queria: um ponto de apoio para saber melhor dos problemas e do pé em que estavam as coisas.

Logo fiquei sabendo que, no lugar de oito, havia 40 famílias, e que o chefe deles era um tal de Raimundo Buchinho, cujo apelido dispensa a descrição física. Fui procurá-lo em Mucajaí, a 50 quilômetros de Boa Vista. Encontrei-o com a camisa aberta – mesmo porque talvez os botões não chegassem às casas –, abanando as laterais para diminuir o calor sufocante que reinava.

– O senhor é Raimundo Buchinho, não é? – perguntei, ainda que notasse a inutilidade da pergunta.

– Sou eu mesmo – respondeu-me com certo ar de empáfia, própria de algumas pessoas que ainda não encontraram ninguém mais forte.

– Meu nome é José Bonfim - alertei-lhe. Estou vindo aqui porque recebi ordens de tirar os posseiros da área do senhor Belém, invadida por 40 posseiros sob seu comando.

Quando Buchinho ouviu meu nome, mudou de cor e percebi que até tremia as pernas. Transmudou o tom de voz e disse que logo iria lá falar para o pessoal deixar a área. Pediu-me que voltasse no outro dia para saber da conversa que iria ter com os posseiros.

Aí me doeu o coração, principalmente porque Belém queria tirá-los sem indenização, dizendo que a invasão era recente. No entanto, a maioria deles já estava lá há mais de seis anos.

Voltei a Boa Vista e falei com Belém, dizendo-lhe que eu aceitava tirar o pessoal de lá, mas sob a condição de permitir que colhessem primeiro o que haviam plantado e que ele pagasse 130 reais por alqueire de matas derrubado. Ele concordou e, mais aliviado, no outro dia fui reencontrar-me com Buchinho.

Ele estava me esperando, juntamente com 10 representantes do grupo que vivia na área. Humildes e medrosos, pediram-me, apenas, um tempo para que pudessem colher o milho e o arroz que haviam plantado e que já estavam quase no ponto de serem colhidos.

Respondi-lhes que teriam o tempo necessário para a colheita do que haviam plantado e que receberiam 130 reais por alqueire de matas derrubado. Ficaram alegres e voltaram para dar a boa notícia aos que ficaram.

Se me consideram um bandido e se imaginam que bandido não tem sentimento, uma ou outra coisa está errado comigo. Poucos vezes senti uma dor mais profunda na alma do que, naquele momento, ver aqueles pobres homens, descalços, mãos calejadas, pele ressecada pelo sol, sem o direito àquele pedacinho de chão, incrustado no quarto maior país do mundo em extensão territorial.

Voltei ao Dr. Belém e disse que a missão estava cumprida e que eu ficaria por lá até que o último deles se retirasse. Comprei mais um lote de terras por lá e, enquanto aguardava a saída dos posseiros, aproveitei o tempo para derrubar 15 alqueires onde pretendia plantar milho, arroz, abóbora, mamão, mandioca...

Animado, fiz um financiamento no Banco, comprei gado, registrei uma firma de prestação de serviços, cerquei as aberturas e, todos os dias, não via a hora de o sol surgir para eu cuidar das plantações.

Cansado e com a tensão diminuída, eu já dormia as noites... Puxa!, cheguei a imaginar que tinha acordado de um pesadelo.

E no dia 18 de setembro, quando mais alegre eu me encontrava ante a natureza que se revestia de flores, eis que negras nuvens apareceram no meu céu de felicidade. O sol estava a pino e um vento agradável balouçava as árvores, arremessando flores no quintal. Da beira do fogão eu olhava pela janela e, possivelmente pela primeira vez, parei para admirar quão belo era o mundo.

CAPÍTULO 42

Novamente preso

A comida estava pronta e, com a “boca cheia d’água”, eu já tomava o prato, pois o estômago doía de fome. Foi quando ouvi murmúrio lá fora acompanhado de palmas e do tradicional “ôi de casa”!

Recorri rapidamente à memória, consultando-a se havia convidado alguém para almoçar ou, quando nada, feito algum trato para aquele horário. Não, não havia.

Fui à janela e vi 12 policiais do lado de fora. Desconcertado, sem outra solução, abri a porta e convidei-os a entrar, porque o almoço estava pronto. Reconhecendo a situação desagradável, eles foram diretamente ao assunto, dizendo que portavam um mandado de prisão contra minha pessoa.

– Se assim é, estou pronto – disse a eles.

Nem autorização para almoçar pedi mais, mesmo porque a fome desapareceu como por encanto. Então eles me algemaram e me levaram à presença da delegada da Polinter. Ela, educadamente, leu alguma coisa relacionada a meus direitos de cidadão e depois mandou que me levassem para a Casa de Detenção. Ali permaneci por oito dias, quando resolveram me transferir para uma penitenciária de segurança máxima.

No princípio fiquei sabendo que havia sido preso devido a uma preventiva já prescrita, pois havia sido expedida há 23 anos. Depois me disseram que era por outro processo em que fui pronunciado há mais de 10 anos. Ambas as causas citadas tornavam a prisão ilegal, mas eu não tinha conhecimento com nenhum advogado amigo e, por isso, fiquei à mercê da decisão deles, decisão essa sempre monitorada por inimigos do Maranhão que precisavam mostrar serviço.

Durante todo o relato desta minha vida atribulada vocês viram que sempre fui preso, segundo a lei, injustamente. Por vingança ou raiva de uma lei estúpida e confusa que exige provas contundentes e quase impossíveis de serem conseguidas para que alguém fique preso, nossos policiais acabam, também, tentando a justiça pelas próprias mãos. Se não, vejamos:

1 - Sou acusado de roubo de carro. Onde as provas?

2 - Sou acusado de assassinar Saul Ribeiro. Onde as provas?

3 - Sou acusado de muitos outros assassinatos. Onde as provas?

4 - Sou acusado de tráfico de drogas. Onde as provas?

5 - Sou acusado de matar mulheres e crianças. Onde as provas?

6 - Sou acusado de roubar gado e até fazendas. Onde as provas?

7 - Sou acusado de formação de quadrilha. Onde as provas?

Há indícios? Sim, há indícios. Sempre me relacionei com bandidos e aproveitadores? Sim, isso é verdade. É verdade, mas não há lei na maior Constituição do mundo (a nossa) que considere evidências como provas cabais para colocar um cidadão atrás das grades.

A bem da verdade, eu até que aceitaria de bom grado apodrecer numa cadeia apenas pelas evidências de tantos crimes, desde que os tantos ladrões e saqueadores da nação, principalmente políticos, ministros, juízes, delegados e detentores de altos cargos, estivessem comigo. Aí sim, eu acreditaria na Justiça. Por ora, tudo é uma triste farsa, uma disputa de gangues de colarinho branco, manipulando o povo e, principalmente, idiotas ingênuos como eu, para encobrir a podridão que existe por detrás da aparência incólume e altiva.

Nós – os “bandidos irrecuperáveis” que hoje mofamos atrás das grades – em geral somos a borra da máquina mortal que trabalhou na seara fatídica de muitos que hoje ostentam importância, vomitando demagogia e nos considerando escória da Nação.

Só Deus sabe quantos desses nossos homens “importantes e ilibados” de hoje me procuraram para eliminar desafetos e praticar atos espúrios. Foram muitos, quase todos. Naquele tempo, ninguém era mais necessário a eles do que a fama que me jogaram nas costas. A maioria de meus companheiros já partiu desta vida e talvez eu tenha ficado para alertar, mais uma vez, ao povo ingênuo deste meu querido Maranhão, que, entre todos os nossos “grandes e poderosos homens” de hoje, talvez o menos bandido seja eu.

Usaram-me, destruíram-me moral e fisicamente. Hoje não passo de um velho e imprestável pistoleiro, sem amigos, sem amparo... recebendo o prêmio de minha estupidez. Cadê meus amigos? Aqueles fazendeiros que puseram minha vida em jogo para desocupar suas fazendas? Aqueles policiais que me usaram para desvendar crimes, descobrir plantações de maconha? Até muitos de meus familiares já se cansaram da solidariedade.

Mas há “Alguém” que sabe que aqui estou por todos eles. Lutei, sofri, perdi tantas e tantas noites, calejei as mãos... Cheguei no limite da loucura porque queria não decepcionar “os amigos” que me procuravam e porque queria o melhor para meus familiares.

Meus familiares! Ah, como agora me vem à lembrança a loucura naquela vingança contra os ciganos que assassinaram meu irmão! Hoje, desiludidos, possivelmente tão certos como eu de que “o crime não compensa”, recolheram-se num quarto qualquer, esperando que o tempo amenize, ao menos um pouco, as indeléveis feridas de suas almas.

Agora, já não preciso de fazendas, de gado, de carro... Tudo isto é ilusão, triste ilusão de quem se imagina eterno. Tudo o que eu queria, neste momento, era esquecer o passado e ver, de quando em vez, ao menos as pessoas que se dizem cristãs, assomarem nesta grade para me prestar um pouquinho de solidariedade.

CAPÍTULO 43

O assassinato do delegado da Receita Federal

Os sucessivos acontecimentos similares que romperam os séculos desde o aparecimento do homem na Terra, acabaram por criar sábios conceitos que definem os seres humanos e as coisas com grande acerto. O provérbio “Faz a fama e fique na cama”, entre tantos, é um que merece toda credibilidade.

Quando cheguei a Roraima, a página policial dos jornais eram fartas de crimes e falcatruas. No entanto, nunca alguém me procurou sobre qualquer tipo de suspeita. Cinco anos depois, apesar de todos os percalços que quase me relegaram à miséria extrema, já meu nome era citado por alguns como opção para esclarecer problemas complicados. Logo logo, também os “santos homens de lá” começaram a mandar recados e a solicitar meus serviços, principalmente para expulsar posseiros tenazes de “suas” terras.

Numa bela manhã de fevereiro de 1997, os jornais destacaram a manchete de que o delegado da Receita Federal, um tal de Nestor, fora brutalmente assassinado por pistoleiros.

Nunca ouvira falar, sequer, que havia esse cargo e esse homem por lá, mas não tardou para que o delegado de Polícia Federal, Dr. William Victor de Almeida Ramos, me “convidasse” a visitar a delegacia.

“Por ordem do Dr. William Victor de Almeida Ramos, Delegado de Polícia Federal, fica o Sr. José Ribamar Martins Bonfim, também conhecido pela alcunha de “Zé Bonfim”, residente na Rua José Aleixo, s/nº, Bairro Asa Branca, Boa Vista-RR, intimado a comparecer nesta Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal, na data de 12.08.1997, às 15h, a fim de prestar esclarecimentos, devendo trazer documento de identidade. Boa Vista, 11 de agosto de 1997. William Victor de Almeida Ramos”

Meu envolvimento se resumia na apreensão de uma avião que, no tempo em que meu irmão Quincas ainda era vivo, fora por ele adquirido em parceria com gente suspeita no assassinato. Mas o avião já não era de meu irmão, além de ele já haver falecido em Imperatriz há um bom bocado de tempo.

Eles exigiam, no mínimo, que eu conhecesse esse tal sócio e que apresentasse a arma do crime. Insistiram, ameaçaram... chegaram até a criar um falsa história pretendendo me intimidar, dizendo que meu filho Hílton, o Macarrão, havia telefonado para lá dizendo que iria dar cabo da vida do delegado William, caso continuasse me perseguindo.

Como já conheço todas essas manobras policiais, fui peremptório em afirmar que, se assim era, que eles prendessem meu filho e averiguassem a veracidade do telefonema e que eles podiam desistir das insinuações porque, ainda que eu tentasse, não iria conseguir inventar nomes, armas e lugares para o assassinato acontecido. Não que eu soubesse e não quisesse entregar ninguém, mas simplesmente porque, de fato, eu não sabia nada a respeito do fato.

Vendo que seria inútil “tirar leite de bode”, o delegado, num desabafo incontido, suspirou:

– Não é seu filho que estamos querendo não, é você. Conhecemos sua folha corrida e não podemos descartar a possibilidade de que tenha alguma coisa a ver com tudo o que acontece de errado por aqui.

Veja, amigo leitor, o que é a fama! Por praticamente 10 anos estive em Roraima, viajando para a Venezuela, a Guiana Inglesa e para outros países de nossa fronteira. Bem podia, nesse tempo, ter forjado documentos, fugido do País, ter mudado de cara... Para tanto, bastava apenas que eu fosse culpado de todos os crimes de que me acusam.

Contrariamente, nunca deixei meu país, sempre tive endereço e jamais deixei de comparecer a todos os lugares em que fui chamado a depor. Acredito que, para qualquer um que tenha um mínimo de raciocínio, será fácil concluir que sou inocente, pelo menos dos crimes mais graves de que me acusam.

Com certeza, também o provérbio “dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és” teve um grande peso na hora da polícia tirar suas conclusões. Seria inocente se dissesse que não conheço grande parte dos homens que não prestam, principalmente no Maranhão. Acontece que minha palavra só terá credibilidade enquanto eu apontar pessoas que não comprometam os “mandarins”, e estes são os maiores e verdadeiros culpados. Jamais me ouviriam se eu citasse “nossos grandes políticos, empresários...”, aqueles que viviam na porta de minha casa especulando a possibilidade de eu eliminar seus desafetos.

Esta é a verdade, verdade que jamais virá à tona, porque a maioria daqueles que poderiam fazê-lo tem interesse de que ela jamais aflore.

Que essas pessoas não se preocupem, não só baseadas no valor inexpressivo de minha denúncia, mas, principalmente, porque também eu, muito mais que eles, quero esquecer o passado confuso de minha vida. Que cada um carregue o pesado fardo das ignomínias que lhe arqueiam a consciência e que, como eu, cada um consiga a graça de encontrar a paz em Nosso Senhor Jesus Cristo.

CAPÍTULO 44

A conversão

Aí está, caro leitor, a verdade sobre mim. Aos tantos que não acreditam no que confessei nesses depoimentos, talvez fosse melhor lembrar que nenhum daqueles que me acusam sabem tão bem quanto eu dos acontecimentos que me envolveram, que me transformaram num bandido..

Fui o protagonista, aquele que respirou a morte em muitas esquinas e veredas, aquele que ouviu as mais obscenas e aviltantes propostas, aquele que agora jura estar dizendo a verdade, não mais por medo da justiça humana, mas sim por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A fama de mau que me atribuem, continua sendo meu maior castigo. “Por outro lado – escreveria no dia 11 de março de 1999, o MM Juiz da 1ª Vara Criminal, Dr. Fernando Mendonça, ao acatar o pedido de prisão preventina contra diversos policiais que receptavam e vendiam produtos de roubo –, analisando os fundamentos da prisão preventiva, temo, primeiramente, que a garantia da ordem pública fique seguramente ameaçada, quando 5 (cinco) policiais civis envolvem-se em situação dessa natureza, chegando ao ponto de, dois deles, passarem a ser comparados, conforme depoimento de Silon, com a mesma fama de José Ribamar Bonfim, cujo nome ainda é motivo de temor nesta região.”

Sei que não fui um exemplo cristão, mesmo porque longe se vai a imagem daquela velhinha que me tomava a mão para riscar-me o sinal da cruz na testa, na boca e no coração. No entanto, ainda hoje posso sentir aquelas mãos cansadas e calejadas mostrando-me os segredos da paz e da felicidade.

Eu me perdi de seus conselhos e sofri bastante neste mais de meio século de vida. Como o filho pródigo, minha querida mãe, estou retornando para procurar aquele caminho que suas mãos me indicavam.

Não está sendo difícil porque, das tortuosas veredas por onde adentrei, ainda são marcantes os vestígios deixados em minha alma. Passo a passo, dia a dia, estarei caminhando de volta, até chegar na encruzilhada do destino outra vez. E quando alcançá-la, só me restará erguer a cabeça e tomar o rumo que a senhora me indicou. Nele, estou certo, ressoará o salmo que sua voz cansada e doce – como berrante a orientar o rebanho – todas as manhãs entoava:

“Deleita-te também no Senhor, e Ele te concederá o que deseja o teu coração. Entrega o teu caminho ao Senhor; confia nEle e Ele tudo fará”.

CAPÍTULO 45

Os outros, onde estão?

Rufam, acolá, os tambores. Imperatriz está comemorando algum acontecimento relevante de sua história.

As chuvas do inverno – um dos mais rigorosos de sua história – já se foram desde junho. O sol brilha lá fora, o asfalto cria ondas de calor, como se abaixo dele uma enorme fogueira estivesse ardendo.

Pelas grades da prisão percebo o rebuliço de pessoas indo e vindo, dando gargalhadas, fazendo planos, olhando o relógio como se estivessem atrasadas.

Os tambores continuam rufando!

Minhas grandes mãos, agora finas e debilitadas, apertam os ferros das grades, ficam vermelhas, doem. Meus olhos, aqueles olhos que podiam divisar as cores de um colibri a dezenas de metros, agora só percebem vultos informes a se locomoverem como os fantasmas de minhas noites de tormento e insegurança.

Sei que lá fora o mundo está em festa. Não sei bem a razão. Apanho os óculos e olho na folhinha esgarçada de tanto eu marcar os dias que me separam da liberdade, dias que parecem cada vez maiores, mais compridos, mais infindáveis. Ajeito os óculos sobre o nariz – eles nunca ficam no lugar certo; detesto ter que usá-los! Examino o calendário. Que terá acontecido nesse dia? Volto a me agarrar na grade, tentando ocupar o tempo que não passa. Nunca me agarrei tanto às futilidades para consumir o tempo!

Pergunto ao guarda que lê um gibi na escrivaninha da recepção. Sem virar o rosto, ele me diz que é o dia da cidade. Lembro então que há dia especial para os dentistas, os policiais, os pais... pra quase todo mundo.

Eu nunca tive dia especial em minha vida. No último aniversário, minha filha enviou-me um cartão. Eu o li letra por letra, milhares de vezes. O cartão era lindo! Jamais irei esquecê-lo. Foi o único que recebi desde o dia em que vim a esse mundo. É..., como todo mundo, eu também nasci um dia! Penso até que não devia tê-lo feito, que foi uma falha divina o haver permitido, porque esse mundo só me trouxe tristezas e decepções, e eu fiz o mesmo com ele.

Lá fora, os tambores continuam rufando.

Estou certo de que, no palanque da Getúlio Vargas, os homens “mais importantes” de Imperatriz, de paletó e gravata, recebem os cumprimentos e a admiração de inocentes crianças, sonhadores estudantes e de varonis soldados. Alguns desses homens são do meu tempo, outros estão chegando agora, dando os primeiros passos em direção aos “segredos para o sucesso”.

Cento e quarenta e sete anos! Imperatriz comemora seus 147 anos de fundação. Deles participo apenas como borrão de tinta na folha negra da história. A 10 centímetros de mim, a liberdade. Tão perto... e tão distante! A grade é feita de ferro grosso e forte. Um forte cadeado, vigiado por policiais, garante que as pessoas estão fora de todo e qualquer perigo. A fera terrível está enjaulada.

Os dias não passam e ainda ficam maiores quando não recebo a solidariedade de alguém. E a cidade está infestada de igrejas. Há mais de uma em cada bairro.

Sou escória do mundo, um ser abjeto, um estorvo para a sociedade. Sou também o grito de justiça que ecoa alto e que deve estar chegando aos céus, clamando a Deus por mais eqüidade.

Penso muito, estico os braços, alongo as pernas, vou ao cubículo, retorno à grade... E o sol parece grudado no firmamento, não declina... o dia não passa!

Essas horas eternas talvez sejam meu maior castigo. Se ao menos me pusessem para trabalhar! Preferiria, mil vezes, estar no campo, vigiado por soldados de metralhadores e chibatas nas mãos do que olhar esses malditos ponteiros que não progridem.

De tanto me acusarem, já nem sei se sou inocente. Apenas minha consciência, segundo meu senso de justiça, não me acusa.

Quando expulsava invasores, o fazia na certeza de que estavam errados invadindo as terras alheias; quando cacei os assassinos de meus familiares, tinha certeza de que não podia confiar na justiça de nossa terra; quando disparei contra meus pretensos algozes, estava certo de que se não o fizesse, eles me matariam... Sempre achei que estava fazendo o que devia ser feito.

Mas essa é a minha justiça, não a justiça da sociedade e dos parentes e protetores daqueles bandidos que saíram perdendo em nossos enfrentamentos.

Mas já pouco importa qual tenha sido a verdade que me levou a tantos desatinos. O certo é que, em todos os meus erros, sempre houve a participação de políticos e homens importantes da cidade e região. Eles são mais responsáveis que eu, porque me induziram aos crimes, usando minha ingenuidade e minha coragem. Eles estão soltos, e eu, condenado a 16 anos de prisão.

Só me resta, neste momento, adaptar a pergunta que Jesus fez ao samaritano leproso que fora curado juntamente com outros e que, sozinho, voltou para agradecer: “Não eram dez os que ficaram limpos? Onde estão os outros nove?”

É!..., caro leitor, os outros, onde estão?

Imperatriz, 16 de julho de 1999.