Este projeto tem por objetivo relacionar aquelas mulheres que, por seu espírito destemido, demonstraram sua liderança e ativismo nas mais diversas área da sociedade, seja porque se destacaram em suas profissões, seja porque enfrentaram adversidades na época em que viveram, marcando seu nome na história do Brasil.
O projeto foi inspirado no livro "Mulheres do Brasil, A história não contada", do escritor Paulo Rezzutti, editora LeYa, 2018. Com base na literatura de Rezzutti, citamos o prefácio que assim diz:
NÃO! AS MULHERES NÃO PRECISAM de mais um homem para falar por elas. A mulher brasileira tem voz própria há anos. Mas eu gosto de contar histórias, e ainda existem histórias a seu respeito que não foram contadas ou não foram contextualizadas dentro do espaço em que existiram. Por isso, respeitando a voz de cada uma dessas mulheres, peço licença para falar sobre elas de um ponto de vista histórico. Eu quero contar como elas foram apagadas ou tiveram o seu papel diminuído. Como foi a luta de muitas das que hoje até são conhecidas, mas tiveram a história do seu passado narrada parcialmente.
Era muito fácil e cômodo para os homens que escreviam história até o século passado reduzir a figura feminina ao papel de mãe, filha ou esposa de algum outro homem. D. Leopoldina, por exemplo, encaixa-se nesse modelo até hoje nos livros escolares. Quando ela aparece, se aparece, é mencionada como sendo mãe de d. Pedro II e esposa de d. Pedro I. Nenhuma palavra é dita a respeito do seu papel no processo da Independência.
Muitas mulheres sobressaíram o suficiente para terem suas histórias, depois de descobertas, transformadas em livros ou teses, mas estes eram restritos a um grupo específico de interessados. Outras não tiveram tanta sorte. Suas memórias, ou seus fragmentos biográficos, alguns verdadeiros quebra-cabeças, ainda descansam em arquivo ou na posse de particulares. Isso falando dos escritores que não sofreram censura das famílias ou das próprias mulheres. Censura de mulheres? Sim. Basta-nos lembrar dos diários femininos que, ainda na minha juventude, fechadinhos com cadeados, eram peças vendidas para meninas em bazares e papelarias. Quantos desses ainda hoje existe preenchidos e guardados? Quantos chegarão à terceira ou quarta geração da família, formada por membros que expõem atualmente a vida na mídia online da moda? Muitos já foram descartados pelas próprias donas. Assim fizeram suas avós e as avós de suas avós, praticando uma autocensura, um não falar sobre si mesmas.
O que me animou a abraçar este projeto foi o fato de já ter me debruçado antes sobre a trajetória de mulheres brasileiras em relação às quais os mitos e estereótipos eram, e ainda são, repetidos mais que suas histórias completas e tridimensionais. Escrever a biografia de d. Pedro I foi um passeio em arquivos públicos e particulares, desbastando e selecionando o material, respeitando o recorte estipulado da biografia, do que eu queria elucidar sobre ele. Já ao escrever sobre as mulheres, a documentação, muitas vezes exígua, precisou ser espremida para que se pudesse entrever a pessoa de carne e osso que existiu e não o ser idealizado que a história criou.
A historiadora Michelle Perrot diz que é preciso que a mulher seja piedosa ou escandalosa – e eu acrescentaria: infeliz – pra pode existir. Esse existir a que Perrot se refere é o fato de a mulher ser notada. Ao ser notada, ela passa a ser “digna” de que o seu nome figure nos livros de história, escritos durante séculos somente pelos homens. Com a história do Brasil, não foi diferente. Enquanto algumas mulheres símbolos são exaltadas por serem exemplos a ser seguido pela sociedade, milhares de brasileiras anônimas são esquecidas porque não se adequaram ao papel social que lhes cabia. Outras são lembradas por terem sido objetificadas. Entram para a mulher cheia de luxúria, linda, com a pele maravilhosa, para atrair a atenção para as termas criadas na região onde morou, construídas anos depois de sua morte.
Muitas tiveram suas histórias editadas, como Chiquinha Gonzaga, que, é sempre bom lembrar, era filha de uma mulata alforriada na pia batismal. Neta de escrava, pouco ou nada tinha de semelhante fisicamente à atriz Regina Duarte, que a interpretou numa minissérie. Outras foram invisíveis, apagadas, pois uma história com elas seria difícil de explicar.
Como os historiadores do século XIX poderiam falar sobre Maria Felipa de Oliveira, que, junto com outras mulheres, lutou contra os portugueses durante a Independência brasileira? Uma história escrita por homens brancos, dentro de uma sociedade escravagista, não daria visibilidade a uma negra, líder de comunidade, pobre, iletrada e que jogava capoeira. Já Maria Quitéria, branca, de classe média e que, obedientemente, voltou à casa paterna após a guerra, era mais fácil de ser explicada como figura feminina no mesmo conflito. Também seria bem difícil explicar o fato de as capitanias hereditárias que mais deram certo, Pernambuco e São Vicente, terem sido administradas por mulheres.
No âmbito das artes, como explicar a paraense Julieta de França, uma das primeiras escultoras brasileiras? Julieta teve a coragem de afrontar a decisão de um júri formado pelos principais nomes das artes brasileiras, que desclassificou um projeto seu de monumento num concurso em 1907. Pela sua insubordinação contra o sistema da arte gerido pelos homens, ela pagou com o esquecimento e a paulatina diminuição de trabalhos. Enquanto isso, Nicolina Vaz, mais “comportada” para os padrões da época, conseguiu diversas encomendas estatais.
Pagu é sempre lembrada pela sua militância política, mas pouco pelo preconceito que o próprio Partido Comunista Brasileiro tinha em relação a ela e ao seu feminismo. Também foi a primeira mulher a desenhar quadrinhos no Brasil, e, numa das ironias do destino, a primeira presa política do país no século XX também foi a responsável pela introdução das sementes de soja, produto que enriquece até hoje a nossa balança comercial.
Este livro não é um dicionário biográfico. Não tenho nenhuma pretensão de procurar encerrar nele a história das brasileiras ou todas as discussões já feitas e ainda por fazer sobre o assunto. Isso seria insano. Por vezes, aparecerão mulheres conhecidas, mas cuja trajetória até chegar à fama foi pouco falada até hoje. Já outras, extremamente faladas e conhecidas, serão mencionadas de passagem. Seria dar mais visibilidade a quem já tem e novamente deixar esquecidas as pouco lembradas.
Além de resgatar a vida de algumas mulheres e o contexto no qual essas histórias se desenvolveram, este livro também mostra a luta por seus direitos. As conquistas femininas no Brasil antes do golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, em novembro de 1937, por exemplo, estavam muito à frente daquelas da França. Se as brasileiras passaram a votar e ser votadas em 1932, somente em 1945 as francesas teriam acesso a esses direitos.
Mas, apesar desse protagonismo, ficamos atrás de vários outros países, ainda nas conquistas trabalhistas para as mulheres. A história dos direitos femininos, além de ser uma história do preconceito de gênero, também é uma questão de classe. Quase todos os livros de história do Brasil que tocam minimamente na questão da mulher na política, falam a respeito da médica paulista Carlota Pereira de Queirós, primeira mulher a ser eleita deputada para a Constituinte de 1934, mas não falam que ela não era a única naquela assembleia. Havia também Almerinda Farias Gama, alagoana negra e pobre, representante sindicalista na Constituinte.
Estas são as histórias de algumas mulheres que tiveram seus papéis apagados ou cosmeticamente modificados para se adequarem a uma história de nosso país escrita pelos homens com a mentalidade de suas respectivas épocas. Essa história foi clonada por repetição, de maneira dogmática, durante séculos e precisa ser revisitada, recontada milhares de vezes se necessário, até que o padrão se modifique.
Na Sorbonne, décadas atrás, surgiu a discussão a respeito de existir efetivamente uma história das mulheres, uma vez que a história até então, em grande parte, havia sido escrita pelos homens. Independentemente do que os outros homens do passado tenham feito, os de agora têm por obrigação refletir, questionar e ajudar a influenciar as mudanças culturais necessárias. Este livro é a tentativa, ainda que de um homem, de trazer à luz diversas histórias de mulheres que precisam ser conhecidas e de mostrar aos homens que temos ainda muito o que aprender sobre elas e sobre nós mesmos. (Paulo Rezzutti)